O tema do estilo de vida introduz um outro: o da
qualidade de vida na velhice. Será que podemos afirmar que a velhice significa
má qualidade de vida? Se considerarmos que a senescência progressiva traz consigo restrições
que podem atingir a capacidade de comunicação visual e verbal, afetar o
desempenho intelectual ou prejudicar o estado geral, através de múltiplas
noxas, teremos tendência a dar resposta positiva àquela pergunta. De facto, aquele cortejo
de restrições é responsável pela perceção negativa que se tem do
envelhecimento, sobretudo numa sociedade onde os valores dominantes são o culto
da juventude, do belo, do vigor e do brilho intelectual. Porém, a imagem que se
tem dos idosos está longe de coincidir com a que eles têm de si próprios: a sua
autoimagem é quase sempre melhor. Na
verdade, muitos idosos que têm algumas limitações desfrutam, apesar disso, de
um estado de saúde razoável e conseguem conviver bem com as restrições que elas
lhes impõem. Alguns até referem uma melhoria de vida com a idade e não uma
pioria. É exemplo disso um estudo finlandês sobre cerca de 250
mulheres pós-menopáusicas, analisadas em duas épocas separadas de dez anos,
revelando que a satisfação com a saúde foi idêntica nos dois momentos, isto
apesar do estado de saúde de muitas ser pior no segundo (a percentagem das que
padeciam de angina de peito subiu de 6 para 20%). Curiosamente, a avaliação que
estas mulheres pós-menopáusicas fizeram da sua capacidade física (capacidade de
corrida) melhorou, apesar de objetivamente ela se ter reduzido. Isto mostra até
que ponto a avaliação da qualidade de vida é mais dependente de fatores
subjetivos que dos objetivos.
Grande parte da bibliografia
sobre a qualidade de vida assenta na avaliação da qualidade de vida dos outros.
Ora, a qualidade de vida só pode ser corretamente avaliada na primeira pessoa.
A vida é um valor universal, mas é vivido na singularidade de cada um. Só o
próprio pode dizer como é a sua vida. Não surpreende, por isso, que a visão dos
outros seja muito distinta de quem vive a situação em causa. Neste contexto, é
preferível falar de satisfação de vida que de qualidade de vida, pois se torna
mais evidente o seu carácter subjetivo. Frequentemente, grandes limitações que
aos nossos olhos, de observador externo, deveriam ser insuportáveis, são
vividas pelo sujeito delas com espantosa aceitação.
A minha mãe teve uma vida
centenária. Faleceu um mês depois de ter celebrado os 100 anos e até aos 90
esteve bem. Além de problemas cardíacos sérios, várias mazelas se foram
acumulando depois, a começar pela perda de audição, continuando com a cegueira
total e terminando com a falência de forças que a levou a estar acamada nos
últimos anos. Reduzida ao leito, sem ver e quase não ouvindo, a sua vida de
relação estava de tal modo comprometida que quem a via poderia pensar: não tem
qualidade de vida. No entanto, ela considerava-se feliz. Às vezes dizia: “Deus
nosso Senhor esqueceu-se de mim”. Mas logo acrescentava: “Enquanto me quiser
cá, eu estou bem”.
Como vemos, limitações muito
graves, parecendo a quem vê de fora que deviam levar o idoso a lamentar a sua
qualidade de vida, são frequentemente aceites com surpreendente tolerância,
considerando ele que tem uma qualidade de vida bastante satisfatória. Por isso,
deve ser encarada com a maior reserva a avaliação da qualidade de vida feita
por outros, ainda que sejam os seus próximos ou o pessoal de saúde. Em
circunstâncias deste teor, nem é raro que a compaixão mal direcionada leve
pessoas que amam o idoso a julgar que a morte lhes seria desejável.
Prof. Doutor Henrique Vilaça
Ramos
Sem comentários:
Enviar um comentário