13/03/14

QUALIDADE DE VIDA NA VELHICE

O tema do estilo de vida introduz um outro: o da qualidade de vida na velhice. Será que podemos afirmar que a velhice significa má qualidade de vida? Se considerarmos que a senescência progressiva traz consigo restrições que podem atingir a capacidade de comunicação visual e verbal, afetar o desempenho intelectual ou prejudicar o estado geral, através de múltiplas noxas, teremos tendência a dar resposta positiva àquela pergunta. De facto, aquele cortejo de restrições é responsável pela perceção negativa que se tem do envelhecimento, sobretudo numa sociedade onde os valores dominantes são o culto da juventude, do belo, do vigor e do brilho intelectual. Porém, a imagem que se tem dos idosos está longe de coincidir com a que eles têm de si próprios: a sua autoimagem é quase sempre melhor. Na verdade, muitos idosos que têm algumas limitações desfrutam, apesar disso, de um estado de saúde razoável e conseguem conviver bem com as restrições que elas lhes impõem. Alguns até referem uma melhoria de vida com a idade e não uma pioria. É exemplo disso um estudo finlandês sobre cerca de 250 mulheres pós-menopáusicas, analisadas em duas épocas separadas de dez anos, revelando que a satisfação com a saúde foi idêntica nos dois momentos, isto apesar do estado de saúde de muitas ser pior no segundo (a percentagem das que padeciam de angina de peito subiu de 6 para 20%). Curiosamente, a avaliação que estas mulheres pós-menopáusicas fizeram da sua capacidade física (capacidade de corrida) melhorou, apesar de objetivamente ela se ter reduzido. Isto mostra até que ponto a avaliação da qualidade de vida é mais dependente de fatores subjetivos que dos objetivos.
                       
Grande parte da bibliografia sobre a qualidade de vida assenta na avaliação da qualidade de vida dos outros. Ora, a qualidade de vida só pode ser corretamente avaliada na primeira pessoa. A vida é um valor universal, mas é vivido na singularidade de cada um. Só o próprio pode dizer como é a sua vida. Não surpreende, por isso, que a visão dos outros seja muito distinta de quem vive a situação em causa. Neste contexto, é preferível falar de satisfação de vida que de qualidade de vida, pois se torna mais evidente o seu carácter subjetivo. Frequentemente, grandes limitações que aos nossos olhos, de observador externo, deveriam ser insuportáveis, são vividas pelo sujeito delas com espantosa aceitação.
 
A minha mãe teve uma vida centenária. Faleceu um mês depois de ter celebrado os 100 anos e até aos 90 esteve bem. Além de problemas cardíacos sérios, várias mazelas se foram acumulando depois, a começar pela perda de audição, continuando com a cegueira total e terminando com a falência de forças que a levou a estar acamada nos últimos anos. Reduzida ao leito, sem ver e quase não ouvindo, a sua vida de relação estava de tal modo comprometida que quem a via poderia pensar: não tem qualidade de vida. No entanto, ela considerava-se feliz. Às vezes dizia: “Deus nosso Senhor esqueceu-se de mim”. Mas logo acrescentava: “Enquanto me quiser cá, eu estou bem”.
 
Como vemos, limitações muito graves, parecendo a quem vê de fora que deviam levar o idoso a lamentar a sua qualidade de vida, são frequentemente aceites com surpreendente tolerância, considerando ele que tem uma qualidade de vida bastante satisfatória. Por isso, deve ser encarada com a maior reserva a avaliação da qualidade de vida feita por outros, ainda que sejam os seus próximos ou o pessoal de saúde. Em circunstâncias deste teor, nem é raro que a compaixão mal direcionada leve pessoas que amam o idoso a julgar que a morte lhes seria desejável.
 
Prof. Doutor Henrique Vilaça Ramos

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