Alfredo Roque
Gameiro foi um pintor e ilustrador português, especializado na arte da
aguarela. Nasceu em 1864 em Minde, no concelho de Alcanena, e faleceu em 1935
em Lisboa. Estudou na Escola de Belas-Artes de Lisboa, onde foi discípulo de
Manuel de Macedo, Enrique Casanova e José Simões d’Almeida. Frequentou de 1893
a 1895 a Escola de Artes e Ofícios de Leipzig, como bolseiro do Estado
português. De regresso a Portugal, assumiu a Direcção artística da Companhia
Nacional Editora e posteriormente exerceu actividade docente na Escola
Industrial do Príncipe Real. Considerado “Mestre insigne da aguarela”, deixou
um vasto legado de obras de grande beleza e requinte, tendo obtido diversos
prémios e distinções, nacionais e internacionais.
Iniciou a sua actividade
como ilustrador em 1888, pintando ao longo da sua vida inúmeras aguarelas para
diversas publicações, tanto de carácter histórico e etnográfico como
literárias. A maior parte do seu espólio encontra-se no Museu de Aguarela Roque
Gameiro, que inclui obras do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste
Gulbenkian, em depósito.
“Este cavalheiro era João Semana” é uma das
várias aguarelas que Roque Gameiro concebeu, entre 1904 e 1905, para ilustração
do romance de Júlio Dinis As Pupilas do
Senhor Reitor. Representa, de forma realista, a personagem João Semana,
médico de aldeia, montado no seu inseparável ginete, que até meados do século
XX era o meio de locomoção privilegiado dos médicos que exerciam clínica no
meio rural, nas frequentes visitas domiciliárias.
Júlio Dinis,
pseudónimo literário de Joaquim Guilherme Gomes Coelho (1839-1871), concluiu o
curso de Medicina com distinção em 1861 na Escola Médico-Cirúrgica do Porto e
integrou o corpo docente desta instituição a partir de 1865. A tuberculose
pulmonar de que padecia desde a juventude (teve a primeira hemoptise no 2.º ano
do curso), foi responsável pela sua morte prematura aos 31 anos. A doença
levou-o a procurar climas mais propícios ao repouso e convalescença.
Deslocou-se algumas vezes por esse motivo à vila de Ovar, donde era natural seu
pai, e ao Funchal, escrevendo algumas das suas obras durante os curtos períodos
em que permaneceu nestes locais. É considerado um dos maiores romancistas da
literatura portuguesa do século XIX.
Egas Moniz, no
seu livro notável Júlio Dinis e a sua obra,
identificou em Ovar as gentes e os lugares que terão servido de inspiração para
As Pupilas do Senhor Reitor, o
primeiro romance publicado do escritor.
Para o distinto professor, “o João Semana das Pupilas é o retrato fiel do cirurgião João José da Silveira, que,
ao tempo da estadia de Júlio Dinis em Ovar, exercia a profissão médica com
grande sucesso, naquela região”. Segundo Egas Moniz, o Dr. Silveira
“era um clínico dedicado aos seus doentes como mais se não podia ser. Fosse a
que hora fosse, em noite tempestuosa de inverno, ou à hora dos frugais
repastos, estava sempre pronto a interromper o sono reparador ou a refeição
principiada para acudir às chamadas dos doentes”.
Maria José
Oliveira Monteiro, em Júlio Dinis e o
enigma da sua vida, considera que muitas figuras das obras dinisianas correspondem
a pessoas reais da povoação de Grijó, onde o escritor passou grande parte da
infância, após o falecimento da sua mãe, também vítima de tuberculose. Na
opinião da autora, o celebrado João Semana apresenta afinidades com o Dr.
Joaquim Silvestre Correia da Silva, estimado pela população local pela sua
personalidade alegre e divertida, bem como pelo seu carácter de benfeitor dos
mais desfavorecidos. Nas suas palavras, “sendo o único cirurgião
formado de mais saber e fama que nesta época existia em Grijó e imediações,
podia ter adquirido boa fortuna num tempo em que os médicos eram raros, porém era
um mãos largas para todos, e à maior parte do povo não levava dinheiro nem
avença”.
Seja como for, o
que parece seguro é que a personagem João Semana, uma das mais conhecidas e apreciadas
de toda a obra do escritor, não representa um ideal utópico e irrealista, mas
foi concebida a partir de clínicos reais inteiramente dedicados ao serviço dos
doentes. Numa época em que
o tratamento da maioria das enfermidades era muito elementar e pouco eficaz,
era ainda mais pertinente o aforismo dos médicos franceses Bérard e Gubler, “curar
por vezes, aliviar muitas vezes, consolar sempre”.
João Semana
reúne as virtudes da generosidade, altruísmo, beneficência e sentido de humor,
essenciais na relação médico-doente ao longo da história da humanidade. Tal atitude
contrasta com a de alguns clínicos, denunciada em outros clássicos da literatura,
de paternalismo arrogante, avidez pelos bens materiais, competição feroz ou
ambição desmesurada pelo poder e influência, que tem levado alguns
profissionais a sacrificarem a nobre vocação médica no altar da fama, do lucro
ou do poder.
A humanização
dos serviços de saúde requer que os profissionais estejam conscientes da
importância fundamental de virtudes como a empatia, o cuidado, a beneficência
ou o altruísmo, na relação assistencial médico-doente.
A personagem
João Semana, retratada nesta aguarela, representa uma justa homenagem a todos
os clínicos portugueses que, ao longo dos tempos, consideraram o serviço
dedicado aos doentes a razão suprema da sua profissão.
(Este artigo foi publicado na 1.º edição de 2014 da Acta Médica Portuguesa, a Revista Científica da Ordem dos Médicos. A versão original, com as referências bibliográficas, pode ser obtida aqui).
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