20/03/14

A SAÚDE NA PINTURA


Alfredo Roque Gameiro foi um pintor e ilustrador português, especializado na arte da aguarela. Nasceu em 1864 em Minde, no concelho de Alcanena, e faleceu em 1935 em Lisboa. Estudou na Escola de Belas-Artes de Lisboa, onde foi discípulo de Manuel de Macedo, Enrique Casanova e José Simões d’Almeida. Frequentou de 1893 a 1895 a Escola de Artes e Ofícios de Leipzig, como bolseiro do Estado português. De regresso a Portugal, assumiu a Direcção artística da Companhia Nacional Editora e posteriormente exerceu actividade docente na Escola Industrial do Príncipe Real. Considerado “Mestre insigne da aguarela”, deixou um vasto legado de obras de grande beleza e requinte, tendo obtido diversos prémios e distinções, nacionais e internacionais.
 
Iniciou a sua actividade como ilustrador em 1888, pintando ao longo da sua vida inúmeras aguarelas para diversas publicações, tanto de carácter histórico e etnográfico como literárias. A maior parte do seu espólio encontra-se no Museu de Aguarela Roque Gameiro, que inclui obras do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em depósito.
 
 “Este cavalheiro era João Semana” é uma das várias aguarelas que Roque Gameiro concebeu, entre 1904 e 1905, para ilustração do romance de Júlio Dinis As Pupilas do Senhor Reitor. Representa, de forma realista, a personagem João Semana, médico de aldeia, montado no seu inseparável ginete, que até meados do século XX era o meio de locomoção privilegiado dos médicos que exerciam clínica no meio rural, nas frequentes visitas domiciliárias.
 
Júlio Dinis, pseudónimo literário de Joaquim Guilherme Gomes Coelho (1839-1871), concluiu o curso de Medicina com distinção em 1861 na Escola Médico-Cirúrgica do Porto e integrou o corpo docente desta instituição a partir de 1865. A tuberculose pulmonar de que padecia desde a juventude (teve a primeira hemoptise no 2.º ano do curso), foi responsável pela sua morte prematura aos 31 anos. A doença levou-o a procurar climas mais propícios ao repouso e convalescença. Deslocou-se algumas vezes por esse motivo à vila de Ovar, donde era natural seu pai, e ao Funchal, escrevendo algumas das suas obras durante os curtos períodos em que permaneceu nestes locais. É considerado um dos maiores romancistas da literatura portuguesa do século XIX.
 
Egas Moniz, no seu livro notável Júlio Dinis e a sua obra, identificou em Ovar as gentes e os lugares que terão servido de inspiração para As Pupilas do Senhor Reitor, o primeiro romance publicado do escritor. Para o distinto professor, “o João Semana das Pupilas é o retrato fiel do cirurgião João José da Silveira, que, ao tempo da estadia de Júlio Dinis em Ovar, exercia a profissão médica com grande sucesso, naquela região”. Segundo Egas Moniz, o Dr. Silveira “era um clínico dedicado aos seus doentes como mais se não podia ser. Fosse a que hora fosse, em noite tempestuosa de inverno, ou à hora dos frugais repastos, estava sempre pronto a interromper o sono reparador ou a refeição principiada para acudir às chamadas dos doentes”.
 
Maria José Oliveira Monteiro, em Júlio Dinis e o enigma da sua vida, considera que muitas figuras das obras dinisianas correspondem a pessoas reais da povoação de Grijó, onde o escritor passou grande parte da infância, após o falecimento da sua mãe, também vítima de tuberculose. Na opinião da autora, o celebrado João Semana apresenta afinidades com o Dr. Joaquim Silvestre Correia da Silva, estimado pela população local pela sua personalidade alegre e divertida, bem como pelo seu carácter de benfeitor dos mais desfavorecidos. Nas suas palavras, “sendo o único cirurgião formado de mais saber e fama que nesta época existia em Grijó e imediações, podia ter adquirido boa fortuna num tempo em que os médicos eram raros, porém era um mãos largas para todos, e à maior parte do povo não levava dinheiro nem avença”.
 
Seja como for, o que parece seguro é que a personagem João Semana, uma das mais conhecidas e apreciadas de toda a obra do escritor, não representa um ideal utópico e irrealista, mas foi concebida a partir de clínicos reais inteiramente dedicados ao serviço dos doentes. Numa época em que o tratamento da maioria das enfermidades era muito elementar e pouco eficaz, era ainda mais pertinente o aforismo dos médicos franceses Bérard e Gubler, “curar por vezes, aliviar muitas vezes, consolar sempre”.
 
João Semana reúne as virtudes da generosidade, altruísmo, beneficência e sentido de humor, essenciais na relação médico-doente ao longo da história da humanidade. Tal atitude contrasta com a de alguns clínicos, denunciada em outros clássicos da literatura, de paternalismo arrogante, avidez pelos bens materiais, competição feroz ou ambição desmesurada pelo poder e influência, que tem levado alguns profissionais a sacrificarem a nobre vocação médica no altar da fama, do lucro ou do poder.
 
A humanização dos serviços de saúde requer que os profissionais estejam conscientes da importância fundamental de virtudes como a empatia, o cuidado, a beneficência ou o altruísmo, na relação assistencial médico-doente.
 
A personagem João Semana, retratada nesta aguarela, representa uma justa homenagem a todos os clínicos portugueses que, ao longo dos tempos, consideraram o serviço dedicado aos doentes a razão suprema da sua profissão.
 
(Este artigo foi publicado na 1.º edição de 2014 da Acta Médica Portuguesa, a Revista Científica da Ordem dos Médicos. A versão original, com as referências bibliográficas, pode ser obtida aqui).

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