11/01/10

MORTE CEREBRAL: DO CONCEITO À ÉTICA

A capa do livro que publiquei em 2004, que coloquei na margem direita desta página, tem suscitado muito interesse e curiosidade. A pedido de vários amigos, transcrevo aqui a introdução que escrevi para essa obra, embora sem as notas de rodapé ou referências bibliográficas:

A definição de morte da pessoa humana é um dos temas mais relevantes e actuais da Bioética, entendida como o “estudo sistemático da conduta humana no campo das ciências da vida e da saúde, enquanto examinada à luz dos valores e princípios morais”. Trata-se de uma questão que diz respeito a todo o ser humano, por definir o momento da cessação da sua existência terrena.
O aparecimento do conceito de morte cerebral, em 1968, e do conceito de morte neocortical, três anos mais tarde, suscitou novos e complexos dilemas éticos, que têm sido motivo de controvérsia, em todo o mundo, entre a comunidade científica e o público em geral.
Embora a maioria dos médicos, juristas, filósofos e teólogos tenham aceite o diagnóstico de morte cerebral como sendo equivalente à morte por paragem cardio-respiratória e, por conseguinte, à morte da pessoa humana, nunca houve uma aceitação generalizada deste conceito, como o demonstra a literatura científica publicada regularmente sobre este tema.
O conceito de morte cerebral, definido como a cessação completa e irreversível da função do cérebro, constitui uma entidade clínica que resultou do desenvolvimento, na década de cinquenta, das técnicas de reanimação e do advento de novas tecnologias, com destaque para a ventilação assistida, desenvolvida para impedir a depressão respiratória, por paralisia muscular, de doentes vítimas de poliomielite aguda (forma bolbar), até então invariavelmente fatal. Esta evolução tecnológica extraordinária veio possibilitar a recuperação de muitos doentes, mas suscitou situações de manutenção de vida, exclusivamente biológica, de doentes em coma profundo devido a lesões estruturais do cérebro, que teriam morrido por paragem cardio-respiratória, se estes meios não estivessem disponíveis.
Este novo conceito de morte cerebral adquiriu uma dimensão prática quando, no final dos anos sessenta, se iniciou a transplantação de órgãos vitais, como o coração ou o fígado, o que exigia que a sua perfusão com sangue oxigenado fosse assegurada até ao momento da colheita. Desde então, os transplantes de órgãos, justamente considerados uma das mais notáveis conquistas da medicina do século XX, têm sido realizados habitualmente a partir de órgãos de cadáveres humanos, em morte cerebral, e vieram permitir o prolongamento da vida e a melhoria da qualidade de vida de milhares de doentes. Presentemente, a escassez de órgãos, provenientes de cadáveres, é o principal factor restritivo da actividade de transplantação, levando a um aumento crescente de listas de espera.
Por outro lado, a correcta gestão dos recursos disponíveis, nas Unidades de Cuidados Intensivos, levou à necessidade de se decidir, em situações de morte cerebral, o momento em que os sistemas de suporte artificial da vida deveriam ser desligados, por se ter ultrapassado a fronteira entre a vida e a morte.
É notório como a comunidade científica e a sociedade em geral se adaptaram tão bem a esta nova modalidade de determinação da morte. Contudo, alguns desenvolvimentos na última década suscitaram algumas incertezas, não só em relação ao conceito de morte cerebral mas também acerca da correcta aplicação dos critérios clínicos e exames complementares, para se estabelecer o diagnóstico definitivo. Algumas destas questões surgiram da inexperiência clínica na determinação da morte, outras resultaram de desconfiança ou desconhecimento acerca do significado deste conceito inovador. Os debates iniciais, nos anos sessenta e setenta, tinham a ver com o desacordo entre os adeptos do conceito de morte cerebral total e os que defendiam a morte do tronco cerebral. Mais recentemente, as questões têm a ver com o conceito de morte neocortical e com a existência comprovada de actividade cortical residual, em doentes em morte cerebral.
A minha integração no Gabinete de Coordenação de Colheita de Órgãos e Transplantes do Hospital de S. João, em 1998, levou-me a estudar em pormenor o conceito de morte cerebral, quer para poder participar activamente e com a “consciência tranquila” nos processos de colheita de órgãos para a realização de transplantes, quer para estar em condições de responder de modo esclarecido a perguntas de familiares de doentes em morte cerebral, como veio a acontecer algumas vezes. A frequência do I Curso de Mestrado em Bioética e Ética Médica, da Faculdade de Medicina do Porto, que teve início no ano lectivo de 1998/99, facilitou o meu estudo sobre estas questões, que veio a culminar no presente trabalho, que resultou também da necessidade sentida de contribuir com uma informação séria, independente, com rigor científico e em língua portuguesa, sobre um assunto que diz respeito a todos os cidadãos, num país em que vigora o modelo de consentimento presumido para a obtenção de órgãos para transplantação.
No primeiro capítulo deste livro, apresenta-se a evolução histórica do conceito de morte cerebral, a partir dos esforços iniciais para se chegar a um consenso sobre a determinação da morte da pessoa humana, fazendo-se também uma descrição sumária dos progressos verificados, no nosso país, na legislação sobre esta matéria.
No segundo capítulo, aborda-se a questão fundamental da definição de morte do ser humano. Inicia-se pela apresentação da metodologia utilizada actualmente no estabelecimento do diagnóstico clínico da morte por paragem cardio-respiratória. Apresenta-se então o conceito de morte cerebral e procede-se à distinção entre duas concepções ligeiramente diferentes do mesmo conceito: a morte do tronco cerebral e a morte cerebral total. Seguidamente, descreve-se a metodologia seguida presentemente para o diagnóstico clínico da morte cerebral. Faz-se referência aos exames complementares de diagnóstico mais frequentemente utilizados, analisando-se as suas vantagens e limitações. Incluem-se ainda as críticas mais pertinentes relativas a este conceito de morte, bem como a respectiva contra-argumentação. Por último, aborda-se a questão do momento da morte, considerando-a mais um processo do que um acontecimento definido no tempo.
No terceiro capítulo, apresenta-se uma outra concepção de morte, mais polémica e controversa, que nunca obteve uma aceitação tão generalizada por parte da comunidade científica, mas que continua a ser proposta como uma definição alternativa às anteriores e a suscitar debates e reflexão ética - o conceito de morte neocortical, por muitos entendido como uma morte social.
No quarto capítulo, analisa-se a eticidade dos conceitos de morte apresentados e suas implicações, com base em princípios e valores como os propostos por Tom Beauchamp e James Childress, reconhecidos pela comunidade médica internacional, que incluem o princípio do respeito pela autonomia, o princípio da beneficência, o princípio da não-maleficência e o princípio da justiça, mas também à luz da casuística e de uma ética de virtudes.
Pareceu-nos pertinente incluir também, em anexo, alguns documentos directamente relacionados com o diagnóstico de morte cerebral e suas implicações éticas e legais.

O presente livro corresponde, em grande parte, à dissertação de Mestrado em Bioética e Ética Médica, intitulada “O Conceito de Morte Cerebral numa Perspectiva Ética”, apresentada na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em 2003 e aprovada, em 4 de Março de 2004, com a classificação de “Muito Bom”, perante júri presidido pelo Prof. Alexandre Sousa Pinto e integrado pelo Prof. João Lobo Antunes (arguente), pelo Prof. Rui Nunes e pelo Prof. Daniel Serrão (orientador da tese de dissertação).

Poderá obter mais informações sobre o livro clicando na sua capa.

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