04/01/10

A INTEGRIDADE DO MÉDICO: UMA VIRTUDE ÉTICA INDISPENSÁVEL

A integridade do médico é uma das virtudes que os pacientes mais apreciam. No entanto, pensamos que esta qualidade não tem sido devidamente valorizada entre nós, quer na formação dos estudantes de medicina quer na prática clínica dos profissionais. Contudo, nos últimos anos, têm sido publicados vários estudos e documentos, principalmente nos E.U.A. e Reino Unido, que destacam a integridade como uma virtude indispensável para o profissionalismo médico.
Considerando que a reflexão ética, no âmbito da medicina, só faz sentido se for relevante ou puder ser aplicada na prática clínica quotidiana, iremos desenvolver algumas características que, em nosso entender, um médico íntegro deveria manifestar, principalmente no âmbito da sua relação clínica com os pacientes.
A presença da virtude moral da integridade por parte do médico parece-nos indispensável para o estabelecimento de uma relação clínica de confiança com o seu paciente. O médico íntegro praticará uma medicina centrada na pessoa doente e alicerçada nos valores éticos contidos no Juramento Hipocrático e nos códigos deontológicos tradicionais. Tal como se encontra expresso no aforismo atribuído a Hipócrates, "a saúde do meu doente será a minha primeira preocupação" (citação incluída na cédula profissional emitida pela Ordem dos Médicos).
Para Edmund Pellegrino, uma das virtudes mais importantes, no âmbito da relação médico-paciente, é a fidelidade às promessas. Em primeiro lugar, a promessa que o médico jurou cumprir de colocar os seus conhecimentos e competências ao serviço do doente. Contudo, a relação de confiança que deve existir entre ambos, que tem por si só um valor terapêutico, conforme já referia Michael Balint, inclui também o cumprimento cabal de outras promessas mais triviais (p.e. volto mais tarde para falar consigo) que, se forem feitas, deverão ser cumpridas.
Uma das recomendações do manual Good Medical Practice, do General Medical Council do Reino Unido, enfatiza a necessidade do médico ser honesto e agir com integridade. De acordo com este documento, isso inclui o dever de não discriminar pacientes ou colegas, nunca abusar da confiança que os doentes em si depositam, nem prejudicar a estima e confiança que a sociedade em geral tem para com a classe médica.
A integridade envolve o respeito pelas convicções morais, políticas ou religiosas dos outros, conforme está consignado no artigo 2.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, desde a sua aprovação pelas Nações Unidas em 1948. No âmbito da relação clínica, trata-se de um direito inalienável do paciente, consagrado no Código Deontológico da Ordem dos Médicos e na Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes, publicada pela Direcção-Geral de Saúde.
O respeito para com o doente inclui também a necessidade de obtenção de um consentimento informado e esclarecido, antes de qualquer acto médico, bem como a aceitação da vontade expressa livremente pelo doente de não se submeter a determinado tratamento médico ou cirúrgico, mesmo que essa decisão lhe possa reduzir a esperança de vida.
No passado e até meados do século XX, a pessoa doente aceitava habitualmente de uma forma passiva a decisão dos clínicos, o que tem sido denominado paternalismo médico. Actualmente, a valorização da autonomia do doente, a obrigação legal de obtenção do consentimento informado, a maior oferta de serviços de saúde, a par de uma maior informação disponível, através da imprensa e internet, têm contribuído para um maior envolvimento e responsabilização do doente na decisão médica.
A decisão clínica deverá ser consistente, rigorosa e racional, tendo por base a anamnese, exame físico e eventuais exames complementares. É actualmente reconhecido que a história clínica fornece, em média, 70 a 80% da informação necessária para se chegar a um diagnóstico. O médico íntegro não deverá ser um “supertecnomédico”, para usar o neologismo de Walter Osswald. Tomará decisões de acordo com o seu saber e a sua consciência, não cedendo a pressões nem a qualquer tipo de suborno. Será inaceitável que o clínico aceite qualquer pagamento, seja em bens ou em dinheiro, para facilitar a marcação de uma consulta, exame ou cirurgia. Do mesmo modo, não deverá prescrever medicação supérflua, requisitar exames complementares de diagnóstico desnecessários, nem propor procedimentos clínicos ou cirurgias dispensáveis.
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O médico íntegro não se preocupará quando o doente expressa, geralmente de forma subtil, o desejo de ouvir uma segunda opinião sobre a sua enfermidade. Pelo contrário, deverá encorajá-lo a fazê-lo e facultar-lhe toda a informação clínica, incluindo os exames complementares já efectuados, de modo que o seu colega disponha de todos os elementos que lhe permita tomar uma decisão esclarecida e fundamentada. O direito que o doente tem de obter o parecer de outro(s) médico(s) sobre o seu estado de saúde também faz parte do Código Deontológico da Ordem dos Médicos e da Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes.
A integridade do médico deverá incluir a obrigação de se manter actualizado, pelo menos na sua área de especialização e acerca de todas as situações clínicas com que lida na sua actividade profissional quotidiana. O clínico deverá estar também consciente do seu dever de informar a comunidade científica de alguma descoberta relevante, contribuindo assim para o progresso da medicina e da ciência.
Outro aspecto da integridade, talvez menos reconhecido, é a capacidade que o médico deverá ter para admitir o seu desconhecimento ou ignorância perante uma patologia invulgar ou em relação ao prognóstico de um caso complexo. Deverá, no entanto, orientar o doente o melhor possível, de acordo com as leges artis, para a resolução do problema clínico. Por outro lado, é de esperar de um médico íntegro que, quando as circunstâncias o permitem, encaminhe o doente para outros colegas ou unidades hospitalares mais diferenciadas, que estejam melhor habilitados a resolver o problema clínico concreto apresentado pelo paciente.
O médico exercendo o seu múnus com integridade não deverá assinar nenhuma certidão de óbito, declaração de doença ou incapacidade, nem qualquer outro documento legal acerca do estado de saúde de um paciente, sem primeiro o observar. Além disso, a declaração que assina deverá ser verdadeira e corresponder à condição real da pessoa no momento da observação clínica.
Os médicos íntegros não utilizam o seu estatuto de respeitabilidade na sociedade e o estado de vulnerabilidade, fragilidade e dependência dos doentes para a obtenção de privilégios, designadamente lucros financeiros ilícitos ou favores de índole sexual. Já Hipócrates referia no seu célebre Juramento: "Em qualquer lar em que entre, terei apenas em mira o proveito dos doentes, abstendo-me de toda a acção prejudicial e corruptora, sobretudo quanto a voluptuosidade nos contactos com homens ou mulheres, sejam livres ou escravos".
O médico agindo com integridade estará disponível para o atendimento dos familiares dos doentes que tem a seu cargo, respondendo às suas questões e preparando-os para o desenrolar previsível do estado clínico dos seus doentes. Por outro lado, assumirá os seus erros e não abandonará um doente quando surge qualquer complicação na sequência de algum procedimento clínico por si efectuado.
O médico íntegro poderá talvez aceitar o patrocínio ocasional da indústria farmacêutica para a sua participação em congressos e acções de formação de reconhecido interesse científico, sem quaisquer contrapartidas, mas evitará situações em que possam surgir conflitos de interesse e jamais aceitará a intromissão das empresas na sua actividade clínica. Do mesmo modo, evitará relações promíscuas ou pouco claras com a indústria farmacêutica na realização de ensaios clínicos ou na publicação dos resultados desses estudos em revistas científicas.
A integridade poderá incluir a defesa intransigente, por parte do médico, dos interesses dos doentes e da população em geral, através da sua participação em fóruns e debates públicos, bem como utilizando a imprensa escrita e falada e as novas tecnologias (através de blogues p.e.), contribuindo desta forma para a promoção da saúde e melhoria da qualidade de vida da população.
O médico que revela integridade deverá ainda ter consciência da dimensão da sua influência e exemplo, procurando, na sua vida pessoal, zelar pela sua saúde, evitando o tabaco, o consumo excessivo de bebidas alcoólicas e qualquer outro tipo de dependências.
Numa época de acelerado progresso dos meios tecnológicos disponíveis, na área da biomedicina, e de uma tendência para a aplicação de modelos de cariz utilitarista na gestão dos serviços de saúde, parece-nos necessário enfatizar a integridade do médico, não imposta como uma pesada obrigação deontológica, mas constituindo condição sine qua non para o exercício de uma medicina humanista, ao serviço do doente.
(O meu artigo completo e respectiva bibliografia poderão ser consultados na Revista Brasileira de Bioética 2008, 4: 143-155. Enviarei cópia a quem o solicitar).

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