PROF. DANIEL SERRÃO
"Ela não conseguia adormecer. Era a noite do dia mais triste da sua vida.
"Ela não conseguia adormecer. Era a noite do dia mais triste da sua vida.
Luísa, a sua menina de 10 anos, morrera, ao fim da manhã, após um ano de luta contra um tumor maligno. No silêncio da noite, sozinha no seu quarto, evocava os doze meses vividos na dúvida, no sofrimento, na esperança, na revolta.
Luísa sempre fora uma criança feliz, mesmo sem ter conhecido o pai, que abalara para a França logo após o seu nascimento e nunca mais dera notícias.
A Mãe criou-a com o seu trabalho sofrido, de casa em casa, a fazer limpezas. Mas as Senhoras deixavam-na levar a Luísa, ainda pequenina; até que atingiu a idade escolar e tudo foi sendo mais fácil. Boa aluna, Luísa era, como disse, uma criança feliz. Até adoecer.
Dores abdominais vagas, difusas, e algum emagrecimento. Devem ser lombrigas, disse o Médico de Família. Mas não eram.
Com o agravamento dos sintomas dolorosos e da perda de peso a Mãe conseguiu uma consulta Hospitalar, ao fim de três meses de espera, graças à ajuda do marido de uma das Senhoras onde trabalhava a dias, que era Médico.
Um mês se passou,de exames analíticos, ecografias e tomografias; disseram-lhe no fim que a Luísa tinha de ficar internada.
Porquê, senhor Doutor? Perguntou a Mãe, aflita. Para ser melhor estudada; ainda não sabemos o que tem a sua filha.
À Luísa ninguém disse nada. Afinal era uma criança de dez anos que nada compreenderia do que lhe estava a acontecer.
Os técnicos faziam nela o seu trabalho, colhiam o seu sangue, metiam-na e tiravam-na de máquinas que zumbiam, assustadoras, e ela só ouvia: esteja quieta, não respire; pode sair.
A Mãe mal tinha tempo para ir ao Hospital porque não podia faltar às Senhoras; era um trabalho a dias e a horas, sem direito a ausências, a falhas, a baixas ou a férias.
Mas não esquece o dia em que a chamaram e que até lhe custou uma manhã sem ganhar nada.
De cara fechada, o médico, informou-a, secamente, que a Luísa tinha cancro e continuaria internada para tratamento.
Foi como se o mundo inteiro desabasse sobre ela. Cancro, a sua menina, a sua companheira, a razão da sua vida de trabalho e o sentido da sua existência! Cancro!
Não podia ser, era engano. Procurou os fugidios olhos do médico que parecia não lhe dar atenção depois de ter proferido a sentença – a sua filha tem cancro.
Senhor doutor, mas tem salvação? – conseguira perguntar.
O médico compulsava um dossier e deu a resposta técnica correcta, sem a olhar nos olhos: depende da forma como aguentar e reagir aos tratamentos; uns casos escapam, outros não. É pena que já não possa ser operada; seria melhor; agora vai fazer apenas quimioterapia. Depois vê-se.
À Luísa ninguém disse nada. Afinal era uma criança de dez anos. Que saberia ela da vida e da morte?
Iniciou um calvário de perfusões venosas repetidas, deitada horas numa cadeira esquisita, com o soro a correr-lhe nas veias; os enjoos e vómitos, a queda do cabelo, a fraqueza e uma fadiga total, do corpo e da mente.
Da doença só sabia o que a Mãe lhe dizia: Luisinha, vais ficar boa, vais voltar para a nossa casa, vais ser outra vez a minha companhia, vais outra vez para a Escola. Mas tens de aguentar os tratamentos; o Doutor diz que tens de aguentar os tratamentos, que é para ficares boa.
Luísa aguentou, com o sentimento interior de que era a sua obrigação; que devia isso à Mãe, que só chorava quando estava com ela, e ao Médico, a esse senhor doutor omnipotente que dava ordens a todos e mal a olhava quando passava pela cama onde ela permanecia, encolhida, fechada num sofrimento silencioso; e bem mais cruel por ser silencioso.
Ao fim de uns meses a Mãe foi de novo chamada ao Hospital. Um outro médico, que ela nunca tinha visto, disse-lhe de forma terminante e sem espaço para nenhuma contestação: vamos dar alta à sua filha, já não temos mais nada para fazer por ela; vai para casa com esta carta para o médico de família.
A Mãe não queria acreditar que era uma sentença de morte que estava a receber nas palavras burocráticas do médico. Mas era.
A vida de Luísa e da Mãe tornou-se assustadoramente penosa. Luísa ficava sozinha, de manhã e numa parte da tarde. Não tinha dores mas precisava de ajuda para a sua higiene pessoal e para se alimentar. Percebeu que já não tinha cura, que ia morrer, mas não podia falar à mãe que continuava a dizer-lhe que iria curar-se. Quando pôde, a Mãe foi ao Centro de Saúde levar a carta do Hospital.
O experiente Clínico Geral que a leu – e ela pouco mais dizia do que: “sarcoma retroperitoneal, de células indiferenciadas, inoperável; três ciclos de quimioterapia sem regressão significativa da massa tumoral; alta para o domicílio” - compreendeu o drama que iria ser o período terminal daquela menina a viver, sozinha, o seu sofrimento.
Visitou-a logo nesse dia e tiveram uma longa e calma conversa, os três, sobre o que seriam as próximas semanas.
Desocultada, assim, a realidade escondida a Mãe teve a mais estranha surpresa da sua vida. Pela primeira vez, Luísa falou, com emoção, do tempo passado no Hospital, de como, ouvindo as conversas dos profissionais entre si, percebeu que tinha uma doença grave, muito difícil de curar e de como estava bem consciente de que a sua vida acabaria em breve. E queria consolar a Mãe da pena e sofrimento que a sua morte lhe ia causar.
A Mãe olhava-a e ouvia-a quase sem poder fazer um gesto ou articular uma palavra. Mas abraçou-a e beijou-a como nunca tinha feito desde o aparecimento da maldita doença.
Luísa sentiu-se acolhida, de novo, no amor da Mãe, naquele amor que sempre tinha sido o seu seguro porto de abrigo nas dificuldades e surpresas da sua infância.
O Clínico Geral, como bom médico de família, também um pouco emocionado disse-lhes finalmente: virá cá todos os dias, uma Enfermeira do Centro que tem a preparação adequada para vos acompanhar e apoiar nos tempos difíceis que se aproximam (referia-se a uma Enfermeira com a Especialidade de Cuidados Paliativos).
A enfermeira era de facto competente. Começou por reorganizar os espaços na pequena casa para que Luísa pudesse falar com ela, com a privacidade possível, e receber as colegas que passaram a visitá-la por sugestão sua, feita na Escola que Luísa frequentara até adoecer. Luísa, enfraquecida, tirava força destas visitas das antigas colegas para fazer planos como se tivesse todo o tempo para viver. E, em certos dias, quando aparecia um colega que era um amigo especial, parecia aquela Luísa, alegre e feliz, de há um ano atrás, quando corria nos recreios ou descobria, debaixo da frondosa tília do terreiro, de mão dada com o Pedro, que há um mistério nas relações humanas que aproxima as pessoas pela sua intimidade mais profunda, de uma forma subtil, inesperada e extasiante.
Mesmo num corpo doente, o íntimo de Luísa vivia, nas visitas do Pedro, a mesma exaltação dos primeiros passeios dos dois, das conversas sem assunto e da descoberta do amor; não nas palavras mas nas mensagens silenciosas dos olhares que se fitam, se prendem um no outro e se revelam, um ao outro, como intimidades pessoais. Era como se a doença a tivesse feito crescer.
A Mãe descobria, agora, porque a doença fora desocultada, uma outra Luísa, uma filha que ela não conhecia, com uma vida interior própria, da qual nunca suspeitara. Esta descoberta tornou possível o desenvolvimento de uma comunicação nova entre a Mãe, que viveu sempre obcecada pelo futuro da Luísa, e a filha que vivia, no presente, a consumação do seu próprio tempo de viver.
Luísa, agora acamada durante quase todo o dia, recebia os cuidados de conforto que a Enfermeira lhe prodigalizava, com o rigor técnico necessário mas com uma atitude de afecto e simpatia. Duas vezes por dia Luísa tinha aquela presença, vinda do mundo lá de fora, que, enquanto lhe prestava cuidados, contava as novidades de conhecidos e desconhecidos, das cantoras pop que casavam e descasavam, que iam ficando grávidas ou davam à luz e, até, das famosas que assumiam, publicamente, que tinham cancro e esperavam curar-se.
Um dia, na visita da tarde, fez-lhe uma pergunta que era, afinal, uma afirmação ou um pedido de confirmação: eu não me vou curar, pois não?
A Enfermeira fez um curto silêncio e confirmou com simplicidade – não vais.
Parecendo, até, aliviada, Luísa não falou, nunca mais, da sua morte próxima, mas começou a conversar com a sua Mãe sobre aquele Deus que lhe tinham ensinado a conhecer na catequese: um Deus castigador das meninas que se portavam mal, um Deus severo, longínquo e inacessível. E parecia incomodada e inquieta.
A Mãe queria sossegá-la mas não sabia como.
Deveria chamar o Padre? Mas então o Padre não era para aplicar aos moribundos a Extrema-unção, quando já nem percebessem o que se estava a passar?
Luísa estava bem lúcida e iria assustar-se vendo entrar o Padre no seu quarto, pensava a Mãe.
Mas foi Luísa que resolveu a dificuldade pois disse à Mãe que queria falar com o Padre da Igreja onde andara na catequese.
O Pároco, agora, era um jovem sacerdote que usava jeans e visitava os paroquianos de bicicleta.
Ouviu a Mãe com muita atenção e respondeu logo: vou lá hoje.
Chegou sereno, até alegre; ouviu os temores de Luísa, o medo das chamas do inferno e da condenação eterna, no juízo final.
Reformulou, logo ali, toda a catequese.
Sabes Luísa, começou o Padre Manuel, Deus ama todas as criaturas, mesmo as mais perversas; mas só o podemos imaginar e conhecer quando amamos outras pessoas em vez de sermos maus para elas. No amor que tu tens à Mãe e no profundo amor que ela tem por ti está a revelação de Deus. Deus ama-te como tu amas a tua Mãe. E como ela te ama a ti. Lembras-te como ela sempre te perdoou quando te portavas mal e logo te arrependias e pedias desculpa? Pois é assim mesmo que Deus te perdoa.
Neste amor de Deus tu vais viver sempre, mesmo quando o teu corpo, o de tua Mãe ou o meu, não estiverem já nesta terra.
Não me perguntes como, porque eu não sei. Nem ninguém sabe. É um mistério.
Só te posso dizer - e disto estou bem certo - que é o amor de Deus por todos os homens que faz aparecer, no nosso espírito, esta confiança na imortalidade.
Alguém disse que cada vida humana, como a tua e a minha, não acaba. Apenas se transforma. Sinto-me bem, como Padre, porque espero esta outra vida, num outro mundo que há-de vir. Esta esperança é o autêntico e real sentido da minha vida e da tua.
Luísa percebeu quase tudo e ficou calma.
Durante as poucas semanas que ainda viveu esteve sempre calma e com longos períodos de silêncio.
Que pensamentos habitariam estes silêncios?
Não sabia a Mãe, nem a Enfermeira, nem o Padre.
E eu, que vos estou a contar esta história real, também não sei.
Porque a vivência do processo de morrer é, talvez, a mais rigorosamente íntima e incomunicável de todas as vivências pessoais.
Luísa viveu tranquila, e um pouco alheada, os seus últimos dias. Pediu à Mãe que não chorasse e que não se sentisse só.
Talvez quisesse dizer, mas não o disse, que estaria sempre presente no amor que as unia."
Esta belíssima e comovente narrativa de um caso, em parte real em parte ficcionado, de uma criança em fim de vida, foi o texto que o Professor Daniel Serrão teve a amabilidade de me enviar para publicar neste espaço. E conclui, "Claro que nem todos os médicos são apenas técnicos e cientistas, nem todos os Centros de Saúde têm enfermeiros com a especialização em cuidados paliativos, nem todas as mães são assim submissas ao “poder” médico, e são pacientes e amorosas para as suas filhas doentes. E nem todos os sacerdotes estão bem preparados para a pastoral de crianças que vão morrer de cancro. O que vos trouxe, afinal, foi uma palavra de esperança."
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