01/07/14

MEDICINA E LITERATURA (2.ª parte)

Num tempo tão paradoxal como aquele que nos está a ser dado viver, tanto se assiste a uma desvalorização das Humanidades, desde logo em termos curriculares nos diferentes níveis de ensino, desinteresse sumariamente sustentado na sua fraca rentabilidade ou empregabilidade nas sociedades contemporâneas, como se depara também com a chamada de atenção, em várias frentes, para a urgência de complementar as formações cada vez mais específicas e tecnológicas com uma formação humanista, no sentido mais abrangente, nobre e consistente do termo, que colmate graves lacunas de formação noutras áreas culturais como a Filosofia, a História, as Línguas, a Literatura e/ou outras expressões artísticas.

Algumas universidades – e desde logo universidades estrangeiras consideradas de topo, mas também entre nós, registe-se, a Universidade do Minho, com os chamados “domínios verticais” no seu curso de Medicina - têm apostado nessa associação de saberes que se não é de modo nenhum nova, aponta para um paradigma outro de conhecimento, onde o grande desafio não é (ou não deverá ser) a simples adição de informações, mas sim a pesquisa e o ensaio cada vez mais sólidos da articulação complementar de saberes com um propósito comum e nuclear: o conhecimento e a preservação do mundo, da vida ou da criação em todas as suas formas.

Assim, em boa hora, seguindo a lógica do próprio pensamento de Edmund Pellegrino, o Doutor Jorge Cruz dedicou os últimos capítulos do seu livro Que médicos queremos? às temáticas da “Medicina e Humanidades” e da “Relação médico-paciente na Literatura”.

Se é verdade que a Medicina é a mais humanista das ciências e a mais científica das humanidades, como defende Pellegrino (note-se, aliás, que o radical indo-europeu “med-“, que significa cuidar, é comum à palavra meditação, ou ao verbo meditar), importa defender a inclusão das Humanidades na formação dos estudantes de Medicina, como o fez Pellegrino, médico e pioneiro da Bioética. E eu diria até mais: essa formação inclusiva deveria acontecer não apenas na formação inicial dos médicos como na sua formação (obrigatória) ao longo da vida, (co)respondendo assim à consideração tão sábia quanto oportuna do conhecido médico português, escritor e pintor, Abel Salazar: “ o médico que só sabe medicina, nem medicina sabe”.

Correndo o risco de ser a este nível suspeita, não posso deixar de sublinhar a importância da Literatura nessa formação humanística dos médicos, uma vez que ela representa já, em si mesma, um vasto domínio onde confluem muitos outros saberes, por vezes também de natureza científica, e onde são trabalhadas as grandes questões existenciais que ocupam e atravessam igualmente outras áreas do conhecimento.

Quando se pensa nas relações entre Medicina e Literatura, imediatamente vêm à ideia os muitos casos de médicos-escritores, não só ao longo dos tempos, como em diferentes quadrantes geográficos e culturais, facto esse que levou à fundação, em 1959, da Union Mondiale des Écrivains-Médecins. A existência de tantos casos de complementaridade de ação ou de “identidade dupla” é já em si mesma bastante sintomática, supondo por conseguinte várias afinidades entre esses dois tipos de “intérpretes de signos”, cuja observação radica e se transforma em narrativa.

No entanto, de modo nenhum o estudo desses exemplos de “identidade dupla” esgota as virtualidades das relações entre Medicina e Literatura. Que puderam (ou podem) aproveitar todos os restantes - os que são médicos e que não são escritores, os que não são nem uma coisa nem outra, mas que um dia já foram ou serão doentes - do contacto com a Literatura e até muito em especial do contacto com a Literatura atravessada pelos universos da Medicina e da doença? Eu diria que uns e outros têm a ganhar com a leitura e a análise dos textos literários (tanto contemporâneos como antigos), na medida em que eles preparam (ou podem preparar) para a observação, para a interpretação, para a reflexão e para a comunicação, em suma, para o reconhecimento e uso cada vez mais ajustado das palavras, não exatamente, claro, de termos científicos, mas das palavras que concorrem para discursos de reflexão e de comunhão; palavras que ressoam conhecimento do passado, que se adaptam ao presente e que imaginam futuro.

Muitas vezes se tem justificado alguma manifesta deterioração da relação médico-paciente com a falta de tempo, com o excesso de burocracia e com o aumento exponencial de exames complementares de diagnóstico. Sabemos bem que essas são razões muito verídicas, mas convir-se-á que, por vezes, existe também, ou quiçá sobretudo, uma falta de sensibilidade ou de compreensão por parte dos médicos (bem como de outros profissionais de saúde) das múltiplas formas de que se revestem o sofrimento, a doença, a angústia, o desespero ou a morte. Por outras palavras, existe incompreensão perante tentativas indiretas do dizer ou mesmo de silêncios na declaração de doença por parte do próprio doente, o que tantas vezes compromete irremediavelmente a sintonia na relação fundadora do encontro entre médico e paciente, e que é, ela própria, ocasião de biografia.

Quer isto dizer que existindo, por parte do médico e/ou de outros profissionais da saúde, falhas no conhecimento do humano – um conhecimento que extravasa de tabelas e nomenclaturas anatómicas ou fisiológicas - instala-se já aí uma incapacidade de comunicação porque incapaz de aceder a uma efetiva individuação. Ora, esta individuação é fundamental para o diagnóstico, prognóstico e terapêutica, concebidos não só em si mesmo, ou seja, em abstrato, mas sobretudo adaptados a uma relação com um outro específico, aberta à singularidade do seu rosto, da sua linguagem verbal e corporal, portanto resistente a (se não mesmo incompatível com) consultas no mundo virtual ou à chamada e-medicina

O convívio com a boa Literatura, portuguesa ou estrangeira, e chamo aqui boa Literatura àquela que se foi mostrando ao longo dos tempos exigente do ponto de vista estético, isto é, do trabalho com a linguagem, não exatamente apenas com a linguagem como um valor em si mesma, mas enquanto meio de representação e construção da densidade antropológica e de questionação do mundo, esse convívio - dizia - não significa um mero conhecimento livresco, como muitas vezes é pejorativamente apontado, mas confere ao leitor (ou pode conferir, se a leitura for aprofundada pela suscitação e discussão de questões antropológicas, filosóficas, estéticas, históricas ou mesmo religiosas) uma experiência maturada de vida.

Através de processos de exposição e de identificação, a leitura de textos literários constitui um espaço privilegiado para o desenvolvimento dessa experiência refletida, fazendo com que cada um, e no caso concreto, cada médico se torne mais humano, no sentido em que o humano é um processo sempre em aberto. Com efeito, nunca será demais lembrar que mais do que nascermos humanos, vamo-nos tornando humanos.
  
Prof. Doutora Ana Paula Coutinho

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