Pelo que acabo de muito
sucintamente expor, facilmente se entenderá que não concebo a relação entre
Medicina e Literatura na base da eventual evasão ou do mero lazer (embora,
claro, a leitura de textos literários faça parte para maioria dos seus tempos
livres), nem tão pouco como uma espécie de complemento de erudição opcional e
decorativa. O que está em jogo quando se cruzam estas duas áreas do
conhecimento e respetivos quadros epistémicos e retóricos, é tão importante e
complexo quanto a compreensão e representação da vida humana nas suas
diferentes e complementares vertentes, pelo que não se deverá ficar por um
simples voluntarismo de horas vagas ou de vagas afinidades.
De resto, o aturado estudo do
Doutor Jorge Cruz a partir da obra de Edmund Pellegrino, mostra bem que não
bastam nem ideias imprecisas, vulgo preconceitos, nem legislações muito
sofisticadas - por muito bem intencionadas que umas e outras possam ser - para
que estejamos perante uma Medicina radicada em valores humanistas e éticos.
Em primeiro lugar, importa que
saibamos exatamente o que está em causa por detrás dos princípios, modelos e
termos, expressos ou subjacentes a diferentes práticas de Medicina. Depois,
importa ter em conta as dificuldades que se apresentam na passagem das teorias
às práticas. Nesse sentido, enquanto leitora e cidadã, (e até agora pelo menos,
pontualmente paciente ou familiar de pacientes), a explicitação do chamado
“paradigma das virtudes” foi para mim muito esclarecedora. Não que eu não
tivesse já intuído que um médico deverá ter certos traços de carácter como a
prudência ou a justiça, mas o enquadramento e explicitação dessas e outras
“virtudes” permitiu-me tomar consciência de diferentes pressupostos e
consequências na formação dos médicos e no decurso do exercício da sua
atividade; permitiu-me encontrar termos mais adequados e fundamentados para
dirimir argumentos e para me envolver naquela pergunta que dá título ao livro
de Jorge Cruz - “Que médicos queremos?” - fazendo-o não de uma forma mais ou
menos emotiva e volátil, como tantas vezes se
assiste na praça pública, mas de um modo mais consciente e consistente.
Julgo que este acesso às palavras
adequadas (como aquelas a que a Literatura também tantas vezes dá acesso), esta
consciência de valores estruturantes de uma prática tão nobre como a prática
médica, pode vir a reunir quer pacientes e sociedade em geral num propósito
comum traduzível no completar do título com o verbo ter - “que médicos queremos
ter?” –, quer aqueles que, pelas suas funções, a completarão com o verbo ser –
“que médicos queremos ser?”. Parece-me evidente que só quando houver, ou sempre
que houver, essa conjunção de vontades e de expetativas, existirá uma
verdadeira relação clínica em prol do humano. Tanto da humanidade do paciente
como da humanidade do médico.
Prof. Doutora Ana Paula Coutinho
Professora Associada do
Departamento de Estudos Portugueses e Estudos Românicos da Faculdade de Letras
da Universidade do Porto. Doutorada em Literatura Comparada.
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