Segundo Edmund Pellegrino, as
competências que devem constar dos programas de estudos humanísticos, na
formação médica pré-graduada, incluem a capacidade de reflexão crítica, a
capacidade de ouvir e ler de forma inteligente, a capacidade de tomar decisões
éticas, a capacidade de apreciar a arte, bem como a capacidade de compreender a
História. Defende que o ensino das humanidades liberta a mente e a imaginação,
estimula a criatividade e proporciona uma melhor apreciação da complexidade da
condição humana. Promove ainda o desenvolvimento das qualidades associadas a
uma educação liberal, designadamente “a capacidade de demanda da verdade, de se
compreenderem os valores dos outros e deste modo avaliar os próprios, de se
conceber uma resposta para os problemas da existência, e de comunicar de forma
clara e persuasiva”.
As disciplinas que poderão
integrar o curriculum das humanidades, pela sua capacidade de enriquecimento do
espírito humano, são a filosofia, a história da medicina, a literatura, a
antropologia, a psicologia, a sociologia, a arte, a teologia, o direito e,
naturalmente, a bioética.
Os objetivos desta formação,
aplicada à medicina, incluem a discussão sobre atitudes e virtudes do médico na
sua atividade profissional; a reflexão crítica acerca do papel do médico na
relação com o paciente e na sociedade contemporânea; a comunicação com o
paciente, a família e a sociedade; a apreciação do contexto sociocultural da
doença; a temática da humanização dos cuidados de saúde; bem como a exposição a
obras clássicas da literatura que promovam a reflexão sobre o exercício da
medicina, a relação médico-paciente, o sofrimento e a morte. Pellegrino considera
que a literatura tem provado ser uma forma eficaz de ensinar o cuidado e
compaixão pelos pacientes, pelos que sofrem e pelos que estão a morrer.
Nos Estados Unidos, os programas
mais bem sucedidos incluem uma disciplina de “Introdução às Humanidades” no
primeiro ano do curso médico, disciplinas específicas nos anos do ciclo
clínico, algumas delas opcionais, de acordo com os interesses dos alunos, assim
como a realização de seminários e aulas teóricas acompanhadas de discussão em
pequenos grupos. Para além de um ensino mais formal, tendo em conta os
objetivos enunciados, pretende-se que os estudantes tenham a oportunidade de
refletir, de modo crítico e construtivo, acerca da abordagem de casos clínicos
e dilemas éticos específicos encontrados na prática clínica.
Pellegrino adverte, porém, que os
casos clínicos devem ser bem selecionados, as questões que levantam devem ser
claramente definidas, e devem ser acompanhados de leituras complementares, para
melhor compreensão do problema. Este autor pretende que a formação humanística
tenha uma aplicação prática na atividade clínica quotidiana e que o ponto de
partida para a reflexão seja sempre “um ser humano real enfrentando um problema
real envolvendo valores, expectativas e preferências”. Lamenta que, por vezes,
a inclusão de disciplinas da área das humanidades nos curricula dos estudantes
de medicina represente mais uma sobrecarga de conhecimentos e informações que
têm de dominar em vez de facultarem o espaço e oportunidade de reflexão
subjacente ao espírito da educação liberal. Porém, um dos sinais promissores da
utilidade e relevância do ensino das humanidades nos cursos de medicina é o
número crescente de estudantes dos EUA que, após a licenciatura, realizam
cursos de formação pós-graduada em bioética e áreas afins.
O filósofo espanhol contemporâneo
Fernando Savater defende que, mais importante que a escolha das disciplinas
humanísticas que se incluam no plano de estudos, é o modo como são ensinadas.
Considera lamentável que por vezes o ensino de línguas ou da própria filosofia
seja transmitido de uma forma monótona, desinteressante e normativa, cerceando
o prazer da descoberta, o estímulo intelectual e o debate de ideias. Pior
ainda, pode levar a uma aversão dos estudantes por estas disciplinas, que é
precisamente o oposto do que se pretende com a introdução a estas áreas do
saber. Salienta que “o professor que quer ensinar uma disciplina tem que
começar por suscitar [nos alunos] o desejo de aprendê-la”.
Infelizmente em Portugal, à
semelhança de muitos outros países, os curricula da formação pré-graduada da
maior parte das escolas médicas, seguindo um modelo científico-positivista,
valorizam principalmente a aquisição de conhecimentos e competências técnicas,
em detrimento de uma formação clássica sólida em estudos humanísticos. Acresce
o facto de o ensino secundário separar relativamente cedo, no 10.º ano de
escolaridade, as disciplinas da área de ciências das humanidades, geralmente
consideradas o parente pobre do ensino secundário, e para o cálculo da média
final de acesso ao curso de medicina as classificações obtidas nos exames
nacionais a três disciplinas, todas elas da área de ciências, terem um papel
determinante.
Segundo Sir David Weatherall, o
sistema de ensino britânico padece do mesmo mal: “Os jovens, se desejam ser
médicos, têm de se distinguir em ciências no ensino secundário a partir dos
quinze anos, depois passam cinco ou seis anos tentando dominar os programas
curriculares sobrecarregados das escolas médicas, após o que são atirados para
a linha da frente da agitada vivência hospitalar moderna. Não admira que nunca
tenham tempo para aprender o suficiente sobre o mundo para serem capazes de
refletirem acerca dos problemas multifacetados das pessoas doentes”.
Tem-se assistido também, nos
últimos anos, a uma valorização crescente da componente técnica e científica de
outras disciplinas da área da saúde, nomeadamente a enfermagem. Por outro lado,
na opinião de Pellegrino, as ciências sociais e humanas como a psicologia e a
sociologia, apesar de importantes, não substituem outras áreas das humanidades
que deveriam integrar os programas curriculares do ensino médico. Na sua
procura de objetividade, têm-se tornado estudos especializados em que o recurso
à estatística e metodologias científicas se sobrepõem à reflexão sobre as
dimensões psíquicas e sociais da pessoa humana.
Há todavia sinais de esperança.
Em Portugal, no curso de medicina da Escola de Ciências da Saúde da
Universidade do Minho existe uma área curricular, em todos os anos do curso,
designada por “Domínios Verticais”, que inclui a antropologia, a filosofia, a
história da medicina, a literatura e a arte, bem como os designados “Casos do
Mês” que consistem na seleção, pelos alunos, de situações da atualidade local,
nacional ou internacional que mereçam reflexão; “Uma Pessoa Confessa-se”, que
consiste no diálogo vivo e presencial com personalidades públicas de
reconhecido mérito, e “Manta de Retalhos”, que são apresentações pelos alunos
de obras literárias e artísticas por eles escolhidas ou da sua autoria.
Parece-nos que esta abordagem
traduz uma melhor integração e articulação das humanidades com a vivência
clínica durante a formação médica pré-graduada. Trata-se de uma filosofia
distinta de outros modelos em que o ensino das humanidades, quando existe, é pontual,
muitas vezes opcional e desarticulado dos restantes conteúdos curriculares,
como uma espécie de contrapeso para compensar o paradigma científico dominante.
Para Pellegrino, a sociedade
atual necessita de médicos que, “além de serem tecnicamente competentes, sejam
compassivos e instruídos, que possam entender como o seu trabalho se relaciona
com a cultura de que fazem parte, e que possam lidar com empatia com outros
seres humanos em sofrimento”, mas reconhece que “todos estes atributos
raramente se encontram numa só pessoa. Um modelo de formação, mesmo baseado em
estudos humanísticos, não pode garantir todos”.
Em nossa opinião, devemos ter em
conta as recomendações de Edmund Pellegrino e outros autores sobre a
necessidade de se valorizar o ensino das humanidades nos cursos de medicina,
pois como refere também João Lobo Antunes, “percebi há muito que a medicina tem
um travo diferente quando é praticada por médicos cultos, não só porque apreendem
mais facilmente a complexidade do que é estar doente […] mas também porque
desenvolvem aptidões como empatia, curiosidade, sentido de humor, imaginação,
disponibilidade, que lhes permitem saborear melhor a profissão que abraçaram”.
Jorge Cruz. Bioética e
Humanidades Médicas: Uma abordagem a partir de Edmund Pellegrino. Mirabilia Medicinae 2:38-48, 2014.
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