29/07/14

O ENSINO DAS HUMANIDADES NAS ESCOLAS MÉDICAS

Segundo Edmund Pellegrino, as competências que devem constar dos programas de estudos humanísticos, na formação médica pré-graduada, incluem a capacidade de reflexão crítica, a capacidade de ouvir e ler de forma inteligente, a capacidade de tomar decisões éticas, a capacidade de apreciar a arte, bem como a capacidade de compreender a História. Defende que o ensino das humanidades liberta a mente e a imaginação, estimula a criatividade e proporciona uma melhor apreciação da complexidade da condição humana. Promove ainda o desenvolvimento das qualidades associadas a uma educação liberal, designadamente “a capacidade de demanda da verdade, de se compreenderem os valores dos outros e deste modo avaliar os próprios, de se conceber uma resposta para os problemas da existência, e de comunicar de forma clara e persuasiva”.

As disciplinas que poderão integrar o curriculum das humanidades, pela sua capacidade de enriquecimento do espírito humano, são a filosofia, a história da medicina, a literatura, a antropologia, a psicologia, a sociologia, a arte, a teologia, o direito e, naturalmente, a bioética.

Os objetivos desta formação, aplicada à medicina, incluem a discussão sobre atitudes e virtudes do médico na sua atividade profissional; a reflexão crítica acerca do papel do médico na relação com o paciente e na sociedade contemporânea; a comunicação com o paciente, a família e a sociedade; a apreciação do contexto sociocultural da doença; a temática da humanização dos cuidados de saúde; bem como a exposição a obras clássicas da literatura que promovam a reflexão sobre o exercício da medicina, a relação médico-paciente, o sofrimento e a morte. Pellegrino considera que a literatura tem provado ser uma forma eficaz de ensinar o cuidado e compaixão pelos pacientes, pelos que sofrem e pelos que estão a morrer.

Nos Estados Unidos, os programas mais bem sucedidos incluem uma disciplina de “Introdução às Humanidades” no primeiro ano do curso médico, disciplinas específicas nos anos do ciclo clínico, algumas delas opcionais, de acordo com os interesses dos alunos, assim como a realização de seminários e aulas teóricas acompanhadas de discussão em pequenos grupos. Para além de um ensino mais formal, tendo em conta os objetivos enunciados, pretende-se que os estudantes tenham a oportunidade de refletir, de modo crítico e construtivo, acerca da abordagem de casos clínicos e dilemas éticos específicos encontrados na prática clínica.

Pellegrino adverte, porém, que os casos clínicos devem ser bem selecionados, as questões que levantam devem ser claramente definidas, e devem ser acompanhados de leituras complementares, para melhor compreensão do problema. Este autor pretende que a formação humanística tenha uma aplicação prática na atividade clínica quotidiana e que o ponto de partida para a reflexão seja sempre “um ser humano real enfrentando um problema real envolvendo valores, expectativas e preferências”. Lamenta que, por vezes, a inclusão de disciplinas da área das humanidades nos curricula dos estudantes de medicina represente mais uma sobrecarga de conhecimentos e informações que têm de dominar em vez de facultarem o espaço e oportunidade de reflexão subjacente ao espírito da educação liberal. Porém, um dos sinais promissores da utilidade e relevância do ensino das humanidades nos cursos de medicina é o número crescente de estudantes dos EUA que, após a licenciatura, realizam cursos de formação pós-graduada em bioética e áreas afins.

O filósofo espanhol contemporâneo Fernando Savater defende que, mais importante que a escolha das disciplinas humanísticas que se incluam no plano de estudos, é o modo como são ensinadas. Considera lamentável que por vezes o ensino de línguas ou da própria filosofia seja transmitido de uma forma monótona, desinteressante e normativa, cerceando o prazer da descoberta, o estímulo intelectual e o debate de ideias. Pior ainda, pode levar a uma aversão dos estudantes por estas disciplinas, que é precisamente o oposto do que se pretende com a introdução a estas áreas do saber. Salienta que “o professor que quer ensinar uma disciplina tem que começar por suscitar [nos alunos] o desejo de aprendê-la”.

Infelizmente em Portugal, à semelhança de muitos outros países, os curricula da formação pré-graduada da maior parte das escolas médicas, seguindo um modelo científico-positivista, valorizam principalmente a aquisição de conhecimentos e competências técnicas, em detrimento de uma formação clássica sólida em estudos humanísticos. Acresce o facto de o ensino secundário separar relativamente cedo, no 10.º ano de escolaridade, as disciplinas da área de ciências das humanidades, geralmente consideradas o parente pobre do ensino secundário, e para o cálculo da média final de acesso ao curso de medicina as classificações obtidas nos exames nacionais a três disciplinas, todas elas da área de ciências, terem um papel determinante.

Segundo Sir David Weatherall, o sistema de ensino britânico padece do mesmo mal: “Os jovens, se desejam ser médicos, têm de se distinguir em ciências no ensino secundário a partir dos quinze anos, depois passam cinco ou seis anos tentando dominar os programas curriculares sobrecarregados das escolas médicas, após o que são atirados para a linha da frente da agitada vivência hospitalar moderna. Não admira que nunca tenham tempo para aprender o suficiente sobre o mundo para serem capazes de refletirem acerca dos problemas multifacetados das pessoas doentes”.

Tem-se assistido também, nos últimos anos, a uma valorização crescente da componente técnica e científica de outras disciplinas da área da saúde, nomeadamente a enfermagem. Por outro lado, na opinião de Pellegrino, as ciências sociais e humanas como a psicologia e a sociologia, apesar de importantes, não substituem outras áreas das humanidades que deveriam integrar os programas curriculares do ensino médico. Na sua procura de objetividade, têm-se tornado estudos especializados em que o recurso à estatística e metodologias científicas se sobrepõem à reflexão sobre as dimensões psíquicas e sociais da pessoa humana.

Há todavia sinais de esperança. Em Portugal, no curso de medicina da Escola de Ciências da Saúde da Universidade do Minho existe uma área curricular, em todos os anos do curso, designada por “Domínios Verticais”, que inclui a antropologia, a filosofia, a história da medicina, a literatura e a arte, bem como os designados “Casos do Mês” que consistem na seleção, pelos alunos, de situações da atualidade local, nacional ou internacional que mereçam reflexão; “Uma Pessoa Confessa-se”, que consiste no diálogo vivo e presencial com personalidades públicas de reconhecido mérito, e “Manta de Retalhos”, que são apresentações pelos alunos de obras literárias e artísticas por eles escolhidas ou da sua autoria.

Parece-nos que esta abordagem traduz uma melhor integração e articulação das humanidades com a vivência clínica durante a formação médica pré-graduada. Trata-se de uma filosofia distinta de outros modelos em que o ensino das humanidades, quando existe, é pontual, muitas vezes opcional e desarticulado dos restantes conteúdos curriculares, como uma espécie de contrapeso para compensar o paradigma científico dominante.

Para Pellegrino, a sociedade atual necessita de médicos que, “além de serem tecnicamente competentes, sejam compassivos e instruídos, que possam entender como o seu trabalho se relaciona com a cultura de que fazem parte, e que possam lidar com empatia com outros seres humanos em sofrimento”, mas reconhece que “todos estes atributos raramente se encontram numa só pessoa. Um modelo de formação, mesmo baseado em estudos humanísticos, não pode garantir todos”.

Em nossa opinião, devemos ter em conta as recomendações de Edmund Pellegrino e outros autores sobre a necessidade de se valorizar o ensino das humanidades nos cursos de medicina, pois como refere também João Lobo Antunes, “percebi há muito que a medicina tem um travo diferente quando é praticada por médicos cultos, não só porque apreendem mais facilmente a complexidade do que é estar doente […] mas também porque desenvolvem aptidões como empatia, curiosidade, sentido de humor, imaginação, disponibilidade, que lhes permitem saborear melhor a profissão que abraçaram”.

Jorge Cruz. Bioética e Humanidades Médicas: Uma abordagem a partir de Edmund Pellegrino. Mirabilia Medicinae 2:38-48, 2014.

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