O seguinte texto, escrito pela
Professora Ana Paula Coutinho a propósito do lançamento do meu livro Que Médicos Queremos? – Uma abordagem a
partir de Edmund D. Pellegrino, foi agora publicado na revista Mirabilia Medicinae (2:70-76, 2014):
Quando, há uns meses atrás, o Doutor Jorge Cruz teve a amabilidade de me contactar a pretexto da alegada revisão linguística do seu livro Que médicos queremos?, a leitura das suas páginas, redigidas de forma clara e concisa, num estilo acessível a um público alargado, embora sem concessões a um qualquer simplismo didático-comercial, logo me tornou evidente que a razão mais importante desse seu ato de confiança tinha outro nome, a saber: a Literatura na sua relação com a Medicina, ou vice-versa.
Quando, há uns meses atrás, o Doutor Jorge Cruz teve a amabilidade de me contactar a pretexto da alegada revisão linguística do seu livro Que médicos queremos?, a leitura das suas páginas, redigidas de forma clara e concisa, num estilo acessível a um público alargado, embora sem concessões a um qualquer simplismo didático-comercial, logo me tornou evidente que a razão mais importante desse seu ato de confiança tinha outro nome, a saber: a Literatura na sua relação com a Medicina, ou vice-versa.
Foi no contexto do Curso de
Doutoramento em Bioética na Universidade Católica que tive a oportunidade de
conhecer o Doutor Jorge Cruz, tal como outros profissionais da saúde que
constituíam a maioria dos participantes da pós-graduação. Fora com grande
satisfação que tomara conhecimento do propósito da Direção desse Curso,
promovido pelo Instituto de Bioética da Universidade Católica, em integrar um
módulo de reflexão a partir de textos literários, em cuja componente letiva
viria a ter o privilégio de colaborar num módulo sobre a representação da
doença, e da morte em particular. Para mim, não se tratava de uma mera questão
de orgulho pessoal (como continua a não ser), ver reconhecida aquela que é a
minha área de formação e de trabalho.
Na realidade, estava e está em
causa algo muito mais forte do que isso: uma arreigada convicção da necessidade
de intervenção do cruzamento de áreas de conhecimento que foram sendo afastadas
entre si por interesses vários, e que a evolução histórica da sociedade como do
conhecimento tanto explica como nos obriga a relativizar e a questionar,
justamente porque nos leva a ver que a confluência dos saberes não só esteve na
origem do conhecimento humano, como também o acompanhou durante muitos e muitos
séculos.
Vindo eu do domínio da Literatura
Comparada, entendida esta como área de investigação e ensino das relações entre
a Literatura e outros discursos epistemológicos ou artísticos, a relação entre
Literatura e Medicina impõe-se-me antes de mais como uma evidência histórica,
inscrita já nos textos da Antiguidade Clássica, raízes de todo o nosso
conhecimento e cultura ocidentais, onde ressalta a profunda afeição ao
conhecimento ou à chamada filosofia, atravessada por saberes de medicina,
botânica, astrologia, retórica ou poesia, entre outras formas de abordagem do
Homem e do mundo que o rodeia.
Essa, digamos, convivência de
saberes que virá a conhecer ainda como ícone o Homem do Renascimento ou
genericamente conhecido como “Humanista” (e que, já agora, deu origem a uma
fascinante personagem, Zenão, no inesquecível romance de Marguerite Yourcenar A Obra ao Negro), essa estreita
convivência, dizia, viria a sofrer um golpe profundo com a divisão entre
Ciências e Humanidades que se consuma, sobretudo, a partir do século XVIII, em
grande medida por influência da chamada Filosofia das Luzes.
Os séculos seguintes
encarregar-se-iam de cavar ainda mais essa separação de águas, desenhando
“ilhas” e “ilhotas” disciplinares em cada um dos caudais (se me é permitido continuar
com essa alegoria topográfica), criando especializações cada vez mais
restritas, onde a celebração de um saber mais específico e aprofundado se tem
tantas vezes perigosamente confundido com uma delimitação possessiva de
território, ou seja, com a sinalização de mais um pequeno domínio de poder…
Chegados que estamos a um novo
século e a um novo milénio, passada que está, aliás, a sua primeira década, vão
crescendo os sinais e as vozes que apontam para a necessidade de rever este
divórcio secular entre Ciências, umas chamadas “exatas” ou “duras”, outras
“sociais” e “humanas” (e quanto haveria aqui a acrescentar sobre os
pressupostos desses qualificativos!), sendo este segundo grupo aquele que
engloba áreas e disciplinas anteriormente designadas como “Humanidades”.
Prof. Doutora Ana Paula Coutinho
Professora Associada do
Departamento de Estudos Portugueses e Estudos Românicos da Faculdade de Letras
da Universidade do Porto. Doutorada em Literatura Comparada.
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