30/06/14

MEDICINA E LITERATURA (1.ª parte)

O seguinte texto, escrito pela Professora Ana Paula Coutinho a propósito do lançamento do meu livro Que Médicos Queremos? – Uma abordagem a partir de Edmund D. Pellegrino, foi agora publicado na revista Mirabilia Medicinae (2:70-76, 2014):

Quando, há uns meses atrás, o Doutor Jorge Cruz teve a amabilidade de me contactar a pretexto da alegada revisão linguística do seu livro Que médicos queremos?, a leitura das suas páginas, redigidas de forma clara e concisa, num estilo acessível a um público alargado, embora sem concessões a um qualquer simplismo didático-comercial, logo me tornou evidente que a razão mais importante desse seu ato de confiança tinha outro nome, a saber: a Literatura na sua relação com a Medicina, ou vice-versa.

Foi no contexto do Curso de Doutoramento em Bioética na Universidade Católica que tive a oportunidade de conhecer o Doutor Jorge Cruz, tal como outros profissionais da saúde que constituíam a maioria dos participantes da pós-graduação. Fora com grande satisfação que tomara conhecimento do propósito da Direção desse Curso, promovido pelo Instituto de Bioética da Universidade Católica, em integrar um módulo de reflexão a partir de textos literários, em cuja componente letiva viria a ter o privilégio de colaborar num módulo sobre a representação da doença, e da morte em particular. Para mim, não se tratava de uma mera questão de orgulho pessoal (como continua a não ser), ver reconhecida aquela que é a minha área de formação e de trabalho.
 
Na realidade, estava e está em causa algo muito mais forte do que isso: uma arreigada convicção da necessidade de intervenção do cruzamento de áreas de conhecimento que foram sendo afastadas entre si por interesses vários, e que a evolução histórica da sociedade como do conhecimento tanto explica como nos obriga a relativizar e a questionar, justamente porque nos leva a ver que a confluência dos saberes não só esteve na origem do conhecimento humano, como também o acompanhou durante muitos e muitos séculos.

Vindo eu do domínio da Literatura Comparada, entendida esta como área de investigação e ensino das relações entre a Literatura e outros discursos epistemológicos ou artísticos, a relação entre Literatura e Medicina impõe-se-me antes de mais como uma evidência histórica, inscrita já nos textos da Antiguidade Clássica, raízes de todo o nosso conhecimento e cultura ocidentais, onde ressalta a profunda afeição ao conhecimento ou à chamada filosofia, atravessada por saberes de medicina, botânica, astrologia, retórica ou poesia, entre outras formas de abordagem do Homem e do mundo que o rodeia.

Essa, digamos, convivência de saberes que virá a conhecer ainda como ícone o Homem do Renascimento ou genericamente conhecido como “Humanista” (e que, já agora, deu origem a uma fascinante personagem, Zenão, no inesquecível romance de Marguerite Yourcenar A Obra ao Negro), essa estreita convivência, dizia, viria a sofrer um golpe profundo com a divisão entre Ciências e Humanidades que se consuma, sobretudo, a partir do século XVIII, em grande medida por influência da chamada Filosofia das Luzes.

Os séculos seguintes encarregar-se-iam de cavar ainda mais essa separação de águas, desenhando “ilhas” e “ilhotas” disciplinares em cada um dos caudais (se me é permitido continuar com essa alegoria topográfica), criando especializações cada vez mais restritas, onde a celebração de um saber mais específico e aprofundado se tem tantas vezes perigosamente confundido com uma delimitação possessiva de território, ou seja, com a sinalização de mais um pequeno domínio de poder…

Chegados que estamos a um novo século e a um novo milénio, passada que está, aliás, a sua primeira década, vão crescendo os sinais e as vozes que apontam para a necessidade de rever este divórcio secular entre Ciências, umas chamadas “exatas” ou “duras”, outras “sociais” e “humanas” (e quanto haveria aqui a acrescentar sobre os pressupostos desses qualificativos!), sendo este segundo grupo aquele que engloba áreas e disciplinas anteriormente designadas como “Humanidades”.

Prof. Doutora Ana Paula Coutinho
Professora Associada do Departamento de Estudos Portugueses e Estudos Românicos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Doutorada em Literatura Comparada. 

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