Nos séculos XVII e XVIII, verificou-se uma divisão radical
entre as ciências e as humanidades, por influência do Iluminismo. Esta cisão
teve profundas repercussões em vários domínios, sendo responsável pela
implementação da racionalidade científica como paradigma dominante. A medicina
passou a ser encarada como uma ciência pelo mundo académico, obtendo o mesmo
estatuto que a física, a química ou a biologia, o que contribuiu para os
enormes êxitos alcançados no conhecimento da etiopatogenia das doenças e seu
tratamento, bem como para o desenvolvimento da farmacologia, da genética e de
muitas outras áreas de especialização.
Contudo, passou a valorizar-se um modelo biomédico ou
biomecânico no ensino e prática da medicina, em detrimento de uma conceção
holística, antropológica ou biopsicossocial da pessoa doente, que só nas
últimas décadas tem vindo a ser novamente apreciada. O médico e bioeticista
Walter Osswald partilha desta opinião: “A partir do iluminismo e da aceitação
da ciência como esperança de salvação, as coisas modificaram-se: a medicina
rejeitou a sua componente de arte para se declarar ciência, dura e pura,
exibindo desvanecidamente as suas descobertas e progressos e prometendo a
resolução, para breve, das imensas áreas de desconhecimento que maculam o mapa
das suas conquistas”.
O modelo biomédico, que tem sido o mais divulgado e
dominante na sociedade contemporânea, está focalizado na doença, enquanto que o
antropológico, como o próprio nome indica, se encontra centrado na pessoa
doente. Segundo o grande bioeticista Edmund Pellegrino, tendo em conta as
quatro dimensões geralmente envolvidas numa relação médico-paciente (biológica,
psicológica, social e espiritual), qualquer modelo que apenas tenha em
consideração uma delas será sempre insuficiente e redutor. Nas suas palavras,
“a limitação empírica mais grave do modelo biomédico é ser unidimensional,
negar a complexidade da experiência de estar doente e, portanto, a complexidade
que envolve o tratamento e cuidado dos pacientes”.
No encontro clínico as circunstâncias não são reprodutíveis,
nem sequer para o mesmo paciente, noutra ocasião. Ao contrário da ciência, que
através do método científico procura conhecimentos baseados na observação
sistemática e controlada, que se forem reprodutíveis se poderão generalizar, a
medicina é, na sua essência, a ciência do caso particular. Por esse motivo,
terá de ser necessariamente humanista, até porque, muitas vezes, o elemento mais
importante na relação assistencial não tem caráter científico. Caso contrário,
não se estará a exercer verdadeira medicina, mas uma amálgama de técnicas,
ciência e psicologia.
Edmund Pellegrino, na esteira do pensador romano do século
II d.C. Aulus Gellius, identifica dois conceitos distintos de humanismo na
medicina. Por um lado, a noção derivada da palavra latina humanitas ou do vocábulo grego paideia,
que significava o ensino e a formação em humanidades e que podemos designar de
componente educacional; por outro lado, o sentido de compaixão ou filantropia
nas relações humanas e em particular no encontro médico-paciente, que podemos
denominar de componente relacional. Na sua opinião, as duas vertentes são
necessárias na prática clínica.
Na conceção de Pellegrino, o humanismo caracteriza-se pela
preocupação genuína pela centralidade da pessoa humana em cada aspeto da
atividade profissional, o que se traduz no respeito pela sua liberdade,
dignidade e sistema de valores, numa demonstração de cuidado e interesse pelo
seu bem-estar. O seu conceito de humanismo não se restringe assim a um ideal
educacional ou literário, nem está dependente de uma formação clássica nas
humanidades. Segundo Patrão Neves, a própria bioética é um movimento de
expressão humanista porque pretende contribuir “para a preservação e promoção
do humano”.
De uma maneira geral, a referência ao humanismo ou
humanização, no contexto da saúde, está relacionada com a necessidade sentida
de que os médicos e outros profissionais tenham um interesse sincero pelos
pacientes como pessoas. Sir William Osler (1849-1919), um dos fundadores do
Hospital Johns Hopkins, em Baltimore, pretendendo destacar a importância deste
aspeto na relação clínica, referia que “é mais importante conhecer o doente que
tem a doença do que conhecer a doença que o doente tem”.
A primeira obra de Edmund Pellegrino Humanism and the Physician, editada em 1979, procura precisamente
chamar a atenção para a relevância e utilidade das humanidades para o exercício
da medicina. Em sua opinião, é fundamental o recurso às humanidades para se
compreenderem melhor as questões éticas e os valores envolvidos em muitas
decisões clínicas, para poder fazer uma autoanálise crítica da prática da
profissão, e porque são elas que conferem as atitudes e competências que
distinguem um médico culto de um simples executor de um conjunto de técnicas e
procedimentos. Considera que um relacionamento verdadeiramente humanista entre
o médico e o paciente permite que cada um expresse o mais possível a sua
humanidade. Defende que um médico culto está mais bem habilitado do que outro
que apenas tenha desenvolvido competências técnicas e científicas, para atender
às várias dimensões do ato médico, que quase sempre envolvem fatores sociais e
mentais para além da componente física ou biológica.
Pellegrino salienta que um médico culto se distingue dos
seus pares pela sua capacidade de pensar de forma crítica e inteligente fora do
âmbito estrito da medicina e sugere que uma das formas mais eficazes dos
médicos evitarem a rotina, o tédio e o desânimo na sua atividade profissional é
através do estudo sistemático de pelo menos uma das humanidades ao longo da vida.
Concorda com a proposta do filósofo estadunidense Albert William Levi, que
dividiu as humanidades em três áreas principais, designadamente a comunicação
(linguagem e literatura), a continuidade (história) e a crítica ou reflexão
(filosofia).
As humanidades ajudam a refletir criticamente sobre as
decisões clínicas, que envolvem quase sempre aspetos éticos, e o impacto que
podem ter na vida dos doentes. Facultam ao médico instrumentos que lhe permitem
fazer uma autoanálise séria e honesta sobre as decisões tomadas, tendo em vista
o aperfeiçoamento da sua prática profissional, evitando o conformismo e a
repetição de erros evitáveis.
A medicina tem claramente um componente científico, na
medida em que utiliza metodologia das ciências na prossecução dos seus fins,
mas tem igualmente um componente humanístico, que valoriza todas as dimensões
da vida humana. Conforme refere Sgreccia, os valores éticos integram a cultura
humanística, os factos biológicos associam-se à cultura científica. Para
Pellegrino, a medicina é a mais humanista das ciências e a mais científica das
humanidades. Nas suas palavras, “a medicina é uma ciência humanista, uma vez
que tem de examinar o ser humano simultaneamente como pessoa e objeto de
estudo.
Por um lado, para compreender o ser humano como objeto de
estudo utiliza uma linguagem objetiva, factual e científica e o método das
ciências, "expurgando" necessariamente todo o mito; por outro lado,
para compreender o ser humano como pessoa, deve ter em conta todos os aspetos
subjetivos, imaginários, intencionais, autoconscientes e mitológicos”. Ao longo
dos séculos, muitos foram os clínicos que se dedicaram às artes ou sentiram a
necessidade de complementar a sua formação científica pelo estudo das
humanidades.
Van Rensselaer Potter sugeriu que a bioética poderia ser a
ponte epistemológica entre as duas culturas mencionadas pelo físico e escritor
inglês C. P. Snow (1905-1980), devido à sua natureza transdisciplinar, que
abrange as ciências e as humanidades, bem como à sua perspectiva ecológica ou
global, não se restringindo ao âmbito das ciências da saúde. Edmund Pellegrino
considera ser a medicina a disciplina que reúne as melhores condições para ser
o elo de ligação entre a cultura científica e a humanística. Também para o
neurocirurgião João Lobo Antunes, “a tese de Snow continua a suscitar
controvérsia e alguma irritação, mas agrada-me por entender eu que a medicina,
filha de mãe jovem, a biologia, e pai idoso, a filosofia […] é, por excelência,
a cultura que harmoniza as outras duas, tão antipaticamente dissonantes”.
Esta perspectiva parece-nos mais realista, pois, ao
contrário da medicina, a bioética não surgiu no contexto das ciências humanas,
mas das ciências médicas. Além disso, não se pode falar com propriedade de um
único modelo de bioética, mas de vários, desde uma perspectiva mais restrita de
uma ética dos cuidados de saúde a uma mais ampla de bioética ambiental, e tendo
em conta os vários desenvolvimentos desta nova área do saber humano nos
diferentes contextos geográficos e culturais do globo.
Jorge Cruz. Bioética e
Humanidades Médicas: Uma abordagem a partir de Edmund Pellegrino. Mirabilia Medicinae 2:38-48, 2014.
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