O texto seguinte foi escrito pelo
Professor Silveira de Brito a propósito do lançamento do meu livro Que Médicos Queremos? – Uma abordagem apartir de Edmund D. Pellegrino (Almedina, 2012). Foi agora publicado na
prestigiada revista da Universitat Autónoma de Barcelona Mirabilia Medicinae (2:77-80, 2014):
Até ao século XVII as pessoas
cultas tinham um domínio dos diversos saberes que ia da Filosofia e Teologia a
todas as ciências. Homens como Platão, Aristóteles, Averróis, Tomás de Aquino e
mesmos os pensadores da escolástica tardia espanhola, por exemplo Francisco de
Vitoria, Francisco Suárez, e, em geral, os pensadores da Escola de Salamanca,
discutiam todas as matérias porque dominavam todo o saber, Filosofia, Teologia,
Direito, Economia, Política, etc. Nesses tempos não havia a distinção entre
letras e ciências e, por isso, no início da Idade Moderna, Descartes tanto
estudava anatomia como discutia os problemas mais intrincados de Filosofia e Teologia.
O último grande espírito
enciclopédico, no genuíno sentido do termo, foi Blaise Pascal. Dominava as
ciências, quer as hoje chamadas ciências formais, como a Matemática, quer as
empírico-formais, como a Física, quer as questões filosóficas e teológicas. No
século XVIII já não encontramos intelectuais tão enciclopédicos, embora
tenhamos que reconhecer que os grandes filósofos, os que deixaram obra
verdadeiramente importante para a História da Filosofia, sabiam imenso de
ciências, como foi o caso de Immanuel Kant, professor em Königsberg, que, sendo
filósofo, também ensinava a Física de Newton.
A separação entre letras e
ciências, iniciada nos séculos XVII e XVIII, foi extremamente empobrecedora
para as duas áreas. E o que se verificou na evolução do conhecimento foi que a
lógica que preside à evolução das ciências, sendo de uma natureza muito própria
– é um pensamento que assume uma racionalidade científica, isto é
técnico-experimental, axiologicamente neutra – permitiu um avanço imenso neste
tipo de conhecimentos. Unanimemente consideramos que sabemos hoje muitíssimo mais
que há 50 anos e enormemente mais do que há dois séculos. Pelo contrário em
Filosofia – pensamento que procura o sentido e a razão de ser do que se pensa e
faz –, o progresso não é evidente e, como escreveu Karl Jaspers, médico e
filósofo alemão, no seu livro Iniciação Filosófica, não sabemos se estamos mais
adiantados ou mais atrasados do que Platão ou Aristóteles, o que origina a
grande tentação de importar para a Filosofia o tipo de raciocínio das ciências,
na esperança enganadora de assim se alcançar um pensamento mais seguro de si e
que progrida.
Esta distinção entre letras e
ciências teve implicações na preparação dos médicos e outros profissionais de
saúde. A investigação e o ensino da medicina centraram-se na doença e acabou
por se perder um pouco de vista a pessoa doente, e isto de um modo especial com
os progressos verificados na segunda parte do século passado. Dantes os meios
de diagnóstico e a capacidade de tratamento de que a medicina dispunha eram
reduzidos. A prática profissional exigia olhar o doente, ler nele os sinais e
esse olhar evitava, porventura, que a atenção se concentrasse apenas na doença.
Hoje, o recurso à parafernália de meios auxiliares de diagnóstico à disposição,
leva os médicos a lerem atentamente análises, relatórios baseados em dados
obtidos por meios que a tecnologia pôs à disposição, o que muitas vezes tem
como consequência que o doente/utente enquanto pessoa, fica um pouco esquecido,
se não mesmo ignorado. Temos aqui, provavelmente, a principal causa da
desumanização dos cuidados de saúde: olha-se para as doenças e seus sintomas e
esquecem-se os doentes.
Em meu entender, a primeira
grande virtude do livro do Doutor Jorge Cruz, é que, na companhia de Edmund
Pellegrino, mostra como não se pode separar a prática da Medicina do estudo da
Filosofia, isto é da reflexão filosófica sobre o sentido do humano, humano de
que faz parte a Medicina. Só se pode exercer Medicina digna desse nome se temos
uma Filosofia da Medicina. Durante os seus estudos de Medicina, Pellegrino
estudou, durante quatro anos, Filosofia e Teologia, matérias que faziam parte
do programa de licenciatura, o que o preparou de um modo privilegiado para o
estudo e exercício da Medicina. Sem uma antropologia filosófica como referência
última do agir, não se exerce medicina digna desse nome, porque esta deve estar
ao serviço do ser humano. Se não sabemos o que é o ser humano, questão
filosófica, como podemos tratá-lo? Como disse o Professor Abel Salazar: “O
médico que só sabe medicina, nem medicina sabe!”.
A segunda grande virtude do livro
é ser uma reflexão profunda sobre a ética dos profissionais da saúde. O autor
não se fica, como acontece em muita Bioética que se ensina nas nossas escolas
de medicina, por enunciar princípios éticos. Dão-se cursos intermináveis sobre
os quatro princípios que devem estar presentes na relação médico/ doente-utente
– autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça –, discutem-se os
conflitos que podem surgir na aplicação desses princípios, mas esquece-se o
fundamental: os princípios têm que ser vividos e não apenas estudados. Como já
dizia Aristóteles: em Ética não chega saber; em Ética deve-se saber para viver.
Diz-se que os princípios devem ser respeitados, porque só assim se respeita a
dignidade humana, valor que deve pautar a atividade clínica.
Mas a vivência dos valores
significa a sua interiorização, significa adquirir aquelas qualidades de
carácter que levam o ser humano à procura habitual do bem; isto é, numa
linguagem rigorosa, mas que hoje fere alguns ouvidos, na sua vivência o
profissional deve praticar habitualmente o bem, isto é, deve ser virtuoso. As
grandes declarações de princípios só têm interesse se forem levadas à prática e
praticar os grandes princípios é, na linha já defendida por Aristóteles, na sua
Ética a Nicómaco, praticar a areté,
termo grego que significa virtude. Praticar as virtudes é praticar as
excelências que distinguem, no ser humano, aquele que procura caminhar para a
perfeição, daquele que não a procura.
E o que o Doutor Jorge Cruz faz
no seu livro é apresentar uma bioética das virtudes, bioética essa
indispensável para que a atividade do profissional de saúde não perca o sentido
do humano, para que a atividade clínica não degenere numa atividade mercantil,
embora também não se possa esquecer a dimensão económica que também tem e o
prestígio social que dá.
Em síntese, hoje a atividade
profissional dos médicos corre dois riscos: ser dominada por um neopositivismo
que tudo sacrifica no altar da ciência, ou reduzir-se a mero mercantilismo,
reduzindo a ser humano ao homo
economicus.
O livro do Doutor Jorge Cruz
leva-nos a descobrir que a atividade médica é humana: pauta-se pela vivência da
dignidade humana, dignidade humana dos que tratam e dos que são tratados. Se a
leitura do livro Que médicos queremos? levar os profissionais de saúde a
viverem os valores humanos próprios dos profissionais de saúde, este livro, em
minha opinião, terá feito tanto pela medicina portuguesa como todo o
desenvolvimento técnico-científico que a tem acompanhado. Por tudo o que acabo
de dizer, considero importantíssimo que os médicos, e os profissionais de saúde
em geral, leiam este excelente livro.
Prof. Doutor José Henrique
Silveira de Brito
Professor Associado com Agregação
na Universidade Católica Portuguesa (Braga). Doutorado em Filosofia.
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