O texto seguinte,
escrito pelo Prof. Walter Osswald, foi publicado pelo jornal Público em 31.07.2013.
O rastreio em saúde mais conhecido do público em geral, nos
últimos tempos, é, ao menos supostamente, o do cancro da mama através do teste
genético de determinação de anomalia no gene designado por BRCA1. Foi a positividade
deste teste que levou a atriz Angeline Jolie a submeter-se à dupla mastectomia.
A remoção dos dois seios é uma intervenção radical que
escapa à lógica usual da intervenção médica: pratica-se uma cirurgia mutilante,
removem-se dois órgãos sãos, por haver uma indicação laboratorial de que as
probabilidades daquela mulher vir a ter cancro mamário são mais elevadas do que
as da população feminina em geral.
Hoje já não se aceita uma espécie de determinismo genético,
reconhecendo os cientistas que os genes não governam tudo no nosso organismo
nem comandam o destino individual. No caso particular do gene BRCA1 (e do seu
parente próximo, o BRCA2), estamos longe de assistir a consenso entre os
especialistas, no que respeita ao real significado da deteção do seu
malfuncionamento.
Muito maior é a diversidade de opiniões em relação à atitude
recomendada às mulheres com teste positivo: vigilância regular, mastectomia
dupla, remoção dos ovários (o quase sempre fatal cancro ovárico está, ao que
parece, relacionado com o BRCA1 defeituoso)? Deve expor-se a situação e aceitar
sem mais a decisão da mulher? Deve esclarecer-se que o teste pode fornecer
resultados falsos?
E a estas questões, relacionadas com cada mulher, juntam-se
outras, de natureza bem mais vasta. Se o teste permite identificar mulheres com
maior probabilidade de virem a ter cancro da mama, não é imperioso
disponibilizá-lo para toda a população feminina, no intuito de virmos a reduzir
a respetiva incidência (lembramos que se trata da doença maligna mais frequente
na mulher)?
A esta questão ética não é possível dar resposta sem termos
em conta o problema das prioridades em saúde, dado que os meios são
reconhecidamente escassos para que possam ser implementadas todas as medidas,
comprovada ou eventualmente úteis para a saúde pública. Um rastreio de toda a
população feminina adulta acarretaria custos elevadíssimos (o teste custa atualmente
cerca de 1000 – 1500 euros; embora a sua larga utilização conduzisse,
provavelmente a uma substancial redução do preço, nunca seria um teste barato,
dada a sua complexidade): no nosso país, seriam cerca de três milhões as
candidatas à realização do teste. Depois, teríamos de equacionar o percurso
ulterior das mulheres em que o teste fosse “positivo”: aconselhamento em
consulta médica/psicológica, cirurgias especializadas, meios complementares de
diagnóstico, seleção dos casos com indicação clínica (neste caso, duvidosa),
acompanhamento; tudo isto com custos adicionais incalculáveis (no sentido de
elevados e de não calculáveis).
Atendendo ao conjunto de circunstâncias, parece poder
concluir-se que não há lugar para um rastreio por meio do teste genético. O que
sabemos é que o programa em vigor na medicina atual (auto-exame, mamografia,
ecografia, ressonância nos casos de dúvida ou suspeita) é eficaz e exequível; e
que as mulheres cujas parentes próximas (mãe, irmãs, filhas) tenham tido cancro
da mama estão em maior risco do que as que não tiveram familiares com a doença.
É preciso que a comunidade não entre em pânico ou excessiva
inquietação quando notícias destas circulam nos meios de comunicação e nas
redes sociais – apesar das suas debilidades e erros, a medicina está atenta e
continua a ser a melhor guardiã da saúde pública.
Prof. Doutor Walter Osswald,
Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa
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