20/09/10

O MEU TEMPO

DR.ª BERTINA TOMÉ

Sentada no meu gabinete, espero pela entrada de mais um utente. Será um toxicodependente ou um alcoólico que vem a uma entrevista para possível admissão na comunidade terapêutica onde trabalho. É tudo o que sei. Cada caso tem características próprias e aguardo com alguma expectativa a pessoa que virá. Sei que se trata de alguém em sofrimento, a precisar de alterar a sua condição de vida. Sinto-me bem-disposta, e vou procurar dar o meu melhor no contacto que estabelecerei com ele. É um trabalho a que tenho prazer em dedicar-me, uma oportunidade de servir a Deus e os outros.
 
Cansada? Não, ainda não estou. O dia vai a meio. A minha expressão facial denota a frescura de uma noite bem dormida.
 
Acabou de entrar. É um indivíduo de trinta e poucos anos, magro, de expressão ansiosa. Esboço um sorriso e convido-o a sentar-se. Começamos a conversar – uma primeira abordagem que eu desejo que seja parte da mudança que ele anseia e precisa de viver.
 
É assim com todos nós. Seja qual for a nossa profissão, oferecemos a essa função as melhores horas do dia, de maior vigor físico, disposição, tolerância, criatividade…
 
Para aqueles que nos são mais próximos (marido, esposa, filhos), temos a dar-lhes os fins-de-tarde e a noite. São as sobras do dia, a altura em que nos sentimos mais cansados, todos a precisar de banho, de jantar e de descanso.
 
Há famílias em que esses fins-de-dia são vividos como um tempo desagradável, de impaciência, vozes alteradas e conflitos. Muitos até vivem o desejo, habitualmente não confessado, de “não ter de voltar para casa ao fim do dia”. E para o romance do casal restará ainda a sobra…dessas sobras, depois dos filhos deitados. Quando resta…
 
De facto, não dispomos de muitas alternativas a este ritmo de vida. Na maioria dos casos, é imperioso que ambos desempenhem a sua profissão a tempo inteiro e, por vezes, um dos cônjuges tenha até mais do que uma ocupação.
 
Contudo, a compreensão desta “injustiça” pode ser o primeiro passo para considerarmos um outro aproveitamento desse tempo como família. Situemos os pontos habituais de conflito e pensemos em estratégias que permitam atenuá-los/resolvê-los. Repensemos a distribuição de tarefas, estabeleçamos de novo as nossas prioridades e timings, admitamos introduzir novas medidas e recursos de apoio (novos eletrodomésticos, adiantamento/planeamento prévio de refeições, apoio exterior no tratamento da roupa ou na limpeza da casa, babysitting, são exemplos de medidas a considerar).
 
De facto, a intimidade necessita de tempo para se construir. Precisamos de dar-lhe prioridade sobre outras solicitações ou tarefas e não nos sentirmos mal por isso. Adiar uma tarefa doméstica em favor de um tempo de intimidade de mais qualidade é uma medida sábia. É verdade que parece contrariar aquelas normas que nos acompanharam no nosso processo educativo, sustentadas pelo principio de que “primeiro a obrigação e depois a devoção”. Porém, não será a intimidade a “obrigação” ao assumirmos o compromisso de casamento? É de tal forma necessária que a louça por arrumar ou a roupa por passar a ferro terão de lhe ser secundárias.
 
Embora vivamos ocasionalmente momentos breves mas “mágicos” de intimidade, quer com um filho quer com o cônjuge, por constituírem oportunidades de maior densidade afetiva, a verdade é que o tempo é um ingrediente fundamental. Brincar com um filho ou ir passear com o marido são meios excelentes de investir tempo na intimidade que nunca deverá ser considerado desperdiçado ou inútil. Métodos de preparação instantânea ou em micro-ondas não se aplicam neste domínio.
 
Mas residirá o segredo exclusivamente no aproveitamento do tempo? Não, não basta encontrar tempo. Há casais que, beneficiando da oportunidade de desfrutar de férias num agradável local de praia, de sol abundante e águas claras e de temperatura amena ou de um quotidiano menos agitado do que noutros tempos, não saboreiam intimidade. Não basta dispor de tempo. É necessária… vontade.
 
Jane Austen vincou este princípio: “Não é o tempo nem a oportunidade que determinam a intimidade – é apenas a disposição. Sete anos não seriam suficientes para criar proximidade em algumas pessoas, e sete dias seriam mais do que suficientes para outras”.

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