PROF. ADRIANO VAZ SERRA
«Refere Van der Kolk (2000) que, para as mulheres e para as crianças, mas não para os homens, os traumas que decorrem de manifestações de violência originadas por pessoas íntimas com quem se tem intimidade costumam constituir um problema muito mais grave do que os acontecimentos traumáticos infligidos por desconhecidos ou por acidentes. Em 1994, menciona Van der Kolk, 62% de quase 3 milhões de agressões feitas a mulheres nos EUA resultaram de pessoas que as vítimas conheciam. No mesmo ano, 63% de quase 4 milhões de agressões feitas a homens ocorreram com desconhecidos. Quatro em cada cinco manifestações de abuso em crianças são perpetradas pelos próprios pais. Mais de 1/3 das agressões domésticas determina lesões graves nas vítimas, o que só acontece em ¼ das vítimas de agressões feitas por desconhecidos. Estes factos, comenta Van der Kolk, levam a considerar que as agressões cometidas “por alguém conhecido” não são menos graves do que as realizadas por desconhecidos.
A violência doméstica pode manifestar-se de quatro formas distintas. A pessoa pode ser vítima de uma só ou chegar a ser vítima de todas elas.
1) Abuso emocional e verbal: usualmente ocorre de uma forma insidiosa e repetitiva, produzindo um grande desgaste emocional. Devido a estas características deixa na vítima feridas psicológicas muito marcadas, difíceis de atenuar, em que é atingida particularmente a sua auto-estima. Em que consiste? A vítima é frequentemente humilhada no confronto consigo e perante os outros, são-lhe chamados os piores nomes possíveis, é manipulada nos seus desejos e sentimentos e é constantemente inferiorizada naquilo que diz e no que realiza.
2) Isolamento: nestes casos a vítima é impedida de ter contacto com familiares ou amigos e, muitas vezes, igualmente com outras pessoas ou situações que possam ser gratificantes. O abusador, a fim de obter um controlo completo sobre a vítima, leva-a e vai buscá-la ao local de trabalho ou a quaisquer outros sítios onde refira que precisa de ir.
3) Ameaças e intimidações: o abusador costuma igualmente fazer ameaças de violência física em relação à vítima, pessoas da sua família de origem, filhos ou animais domésticos de que a vítima goste. Igualmente faz ameaças de “correr com ela” ou “de a deixar sozinha”, levando consigo os filhos.
4) Abuso físico: este costuma surgir como uma sequência natural de escalada quando já ocorreram os pontos anteriores. Quando há períodos em que deixa de haver abuso físico, o facto não significa que as circunstâncias anteriormente mencionadas não vão continuando a surgir e a produzir o seu desgaste emocional.
Infelizmente, em grande número de casos, a vítima tem tendência a esconder o que lhe acontece, por uma questão de vergonha, de dependência económica ou por falta de testemunhas que comprovem o que se passa. Não toma, por isso, as medidas adequadas à sua própria defesa. Por vezes, pessoas que testemunharam os factos, não desejam assumir o seu papel para não se envolverem em conflitos familiares desagradáveis.
Biden (1993) refere a este propósito: “Todos os dias, a todas as horas, na realidade em todos os minutos, uma mulher nos EUA sofre a dor e a violência de uma agressão física. Por cada 6 minutos que passam uma mulher é violada”...”a violência doméstica é a causa principal das lesões sofridas pelas mulheres entre os 15 e os 44 anos”...”O abuso conjugal é mais comum do que o número de acidentes de automóvel, assaltos e as mortes por cancro no seu conjunto”. Este autor menciona ainda:”...um terço das mulheres, vítimas de homicídio, morre às mãos do seu próprio marido ou do seu namorado”.
Em Portugal, de acordo com dados do Ministério da Administração Interna, as denúncias de violência doméstica têm vindo a aumentar progressivamente, para valores superiores a 11% ao ano, tendo-se registado 11.162 queixas em 2000, 12.697 queixas em 2001, 14.071 queixas em 2002, 17.427 queixas em 2003, tendo subido para 20.000 em 2006. A violência contra a(o) cônjuge ou companheira(o) é a mais frequente, constituindo 84% das denúncias.
Segundo o Serviço de Informação a Vítimas de Violência Doméstica a quase totalidade das chamadas recebidas é feita por mulheres (97,8%), pertencendo predominantemente às faixas etárias dos 25 aos 34 anos e dos 35 aos 44 anos.
A Assembleia Geral da ONU definiu, em 1993, a violência contra as mulheres como qualquer acto de violência com base na diferença de género que resulte ou tenha a probabilidade de resultar em lesão ou sofrimento físico, sexual ou mental, incluindo as ameaças de tais actos, coacção ou privação arbitrária de liberdade, quer ocorra em público quer na vida privada.
Judith Herman (1997) refere que os sobreviventes de condições traumáticas, prolongadas e repetidas, desenvolvem frequentemente mudanças persistentes da sua personalidade, incluindo distorções no seu relacionamento com os outros e na sua identidade pessoal. Torna-se uma situação crónica e debilitante que usualmente corresponde a uma história de submissão a um controlo totalitário, durante um período prolongado de tempo, que pode oscilar entre meses e anos.
Van der Kolk et al. (1996) referem que esta entidade clínica, usualmente ligada a circunstâncias traumáticas precoces, costuma apresentar um conjunto complexo de sintomas, nomeadamente:
- Alterações na regulação dos impulsos afectivos, incluindo dificuldade na modulação das manifestações de cólera e comportamento auto-destrutivo;
- Alterações da atenção e da consciência, levando a estados de amnésia, a episódios dissociativos e a fenómenos de despersonalização,
- Alterações na auto-percepção, comprovadas por um estado permanente de culpabilidade, responsabilidade e vergonha;
- Alterações no relacionamento com as outras pessoas, em que o indivíduo se revela incapaz de confiar nos outros e de desenvolver uma relação de intimidade;
- Manifestações de somatização, em que o indivíduo se queixa de sintomas somáticos para os quais não se encontra explicação médica e
- Alterações nos sistemas de significação (perda da fé e sentimentos de desespero e de desesperança).
Como casos típicos assinalam-se as situações de sobreviventes de exploração sexual organizada, de abuso físico ou sexual na infância e de maus-tratos domésticos».
O texto que hoje publico, com a autorização do Prof. Adriano Vaz Serra, integra a excelente comunicação que proferiu em 2008, intitulada "Violência não visível nas sociedades modernas (“A dor que não tem nome”)". Recomendo a leitura do texto integral
aqui.