O tratamento da dor, ou ao menos
a tentativa de a minorar, representam, na longa história (e pré-história) da
medicina um dos dados adquiridos que ninguém põe em dúvida. Há imagens de
Esculápio (ou Asclépio, na versão grega original) segurando na mão esquerda a
serpente enrolada no bastão e, na mão direita, algumas cápsulas de dormideira
ou Papaver somniferum, cujo sumo
concreto, obtido por incisão, é o ópio. Repare-se: o símbolo da própria arte de
curar fica assim preterido (na sinistra) em relação ao princípio vegetal capaz
de tratar a dor (na dextra). Hipócrates, no século IV antes de Cristo não
hesitou em atribuir às mãos dos médicos características divinas, mormente quando
da sua ação resultasse o alívio da dor (“É divino sedar a dor”, proclamava). E
o nosso Zacuto lusitano (nascido como Francisco Nunes em 1575) deixou inscrita,
na listagem dos preceitos médicos, esta notável instrução: Medicus inter omnia symptomata, prius dolorem sedet (Entre todos os
sintomas, dê o médico primazia ao alívio da dor).
Esta especial atenção à dor
parece compreensível: é o sintoma que mais incomoda, aterroriza ou provoca
sofrimento ao doente e, por extensão, aos que o rodeiam. Por natureza, é
entendida como sensação desagradável, podendo ter uma graduação que vai do ligeiro
incómodo ao insuportável sofrimento. Temos pois doentes que desejam obter
alívio e médicos que são competentes para conhecer os meios propiciadores desse
alívio e o modo como podem ser usados. Os médicos da antiguidade só podiam
recorrer ao ópio e às bebidas alcoólicas; só a partir de 1820 é que fica
disponível a morfina que, para maior eficácia, passa a ser administrada por via
injectável, graças à invenção da seringa hipodérmica. Mas só no adiantado
século XIX é que surgem os anestésicos e, graças ao seu uso, a cirurgia
torna-se uma terapia e deixa de ser uma indizível tortura à qual só se recorria
em desespero de causa.
Depois vieram analgésicos,
ativos por via oral, opioides, analgésicos e antipiréticos, com ou sem
componente anti-inflamatória, anestésicos locais, técnicas psicológicas,
aplicações eléctricas, etc. Ou seja, temos hoje armas potentes, diversificadas,
que permitem um tratamento diferenciado dos mais diversos tipos de dor (de que
temos também cada vez melhor conhecimento científico, quanto aos seus
mecanismos e mediadores). Mas é surpreendente verificar que ao sintoma dor não
parece dar-se hoje a importância que os antigos lhe atribuíam. Ou seja, ao
maior conhecimento da natureza da dor e dos mecanismos que lhe subjazem não tem
correspondido uma uniforme e acentuada melhoria do seu tratamento, apesar dos
meios eficazes de que dispomos para a combater.
De facto, se cerca de um terço da
população portuguesa sofre de dor crónica, tal só se pode dever a um tratamento
ineficaz, por esporádico, insuficiente (na posologia e na duração) e muitas
vezes menos correto (por não se recorrer aos medicamentos e esquemas
terapêuticos mais indicados e apoiados em sólidas provas clínicas). Não é
crível que estas circunstâncias adversas se compaginem com ignorância ou dolo
médico, antes se deverão a uma subavaliação da dor (descartado por pacientes e,
sobretudo, por médicos quando não aguda e intensa) e ao preconceito da
perigosidade dos analgésicos, mormente dos anti-inflamatórios e dos opioides.
Ora, a deontologia, apoiada numa
ética universalmente aceite (mas nem sempre presente na decisão médica) e no
bom senso, apontam a dor como sintoma a valorizar, certamente, mas como
situação mórbida a exigir tratamento. Os princípios éticos da beneficência, da solidariedade
e da subsidiariedade não levam a outra conclusão senão a propugnada há tantos
séculos por Hipócrates ou por Zacuto: é fortíssima obrigação médica a de
tratar, sempre, a dor; é perverso pactuar com a dor, deixando o doente à sua
mercê, por não ser alvo de tratamento ou por o ser de forma incompleta ou
inadequada. Não recorrer a um meio apropriado e disponível, em face de uma
situação que constitua uma indicação para o seu uso, constitui erro grave ou
indício de negligência médica.
Prius dolorem sedet, demos a devida prioridade ao tratamento da
dor, para podermos minorar ou suprimir o sofrimento dos doentes e assim nos
aproximarmos do ideal multisecular do médico sábio e compassivo.
Prof. Doutor
Walter Osswald
Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa