«Outrora conhecido por Hospital Miguel Bombarda, na conhecida Cidade das Acácias, Lourenço Marques para os que nunca a esquecerão e Maputo para os que hoje percorrem as suas ruas, o Hospital Central de Maputo encerra ainda hoje, entre os seus jardins rigorosamente desenhados e os pavilhões das diversas especialidades médicas, as histórias de todos os seus protagonistas. Histórias de guerra e de paz, de fome e de crime; histórias de vitória sobre a doença; histórias de doenças vitoriosas. Histórias de morte, histórias de vida, e histórias de amor.
É hora da visita. Filhos em busca de pais, irmãs em busca de irmãos, pais em busca de filhos. Amigos, namorados, esposas ou simplesmente tios, são apenas pessoas que correm e percorrem as pequenas ruas internas num frenesim suado em busca do leito onde os seus aguardam melhores dias.
No meio da multidão, as 2 missionárias, de nacionalidades diferentes, iniciam o seu périplo já rotineiro. Passadas as vendedoras de bolachas, fruta e fraldas, água ou bolinhos, acotovelando-se em palavras de promoção à sua venda (como se disso dependesse a vida dos que estão vivos, pois aqui a vida equaciona-se em frações de dias, de refeições tomadas), segue-se a extensa avenida que atravessa o complexo hospitalar.
A Ortopedia só pode ser para a esquerda, a avaliar pelos doentes amparados nas suas muletas e companheiros que caminham nessa direção. A Psiquiatria adivinha-se na direita, nesse pavilhão de janelas gradeadas, ecoando do seu interior os assobios e pedidos daqueles que não saindo para ver o sol, desejavam ter as visitas que os esqueceram na sombra.
As mulheres apressam-se carregando os seus filhos na capulana cuidadosamente dobrada à volta do seu corpo, como se delas fizessem parte até que o destino, ou mesmo a fome os separe, e os obrigue a caminhar pelos seus próprios pés.
Aproxima-se a Pediatria. Parece que alguém quer que este espaço respire melhor. As paredes estão pintadas de fresco, e as janelas têm cortinas novas. Um ar leve e timidamente alegre para dar alívio aos que entram e esperança aos que ainda não conseguiram sair. Elas sobem ao primeiro andar e pedem para visitar crianças que não tenham visitas.
“São família?” pergunta o segurança. “Não, somos apenas missionárias que desejamos ver crianças que não têm visitas… que fichas tem aí que nos possa dar?”. As fichas são aqueles pedaços de cartão envelhecido, manuseadas milhares de vezes por aqueles que naquela porta entraram para ver meninos e meninas. As fichas são as da cama 7, da Cirurgia Pediátrica, ocupada há mais de 5 anos por um menino… um menino que se chama Alfredo, e que deverá ter hoje 8 anos num corpo de 3. Talvez o mais antigo residente desta casa, abandonado pela sua mãe no dia em que ela lhe descobriu um crescimento exagerado da sua cabeça, consequência daquilo que ninguém sabe nem se atreve a pensar.
O Alfredo apresenta uma macrocefalia tão avançada, que lhe imobiliza a cabeça que o franzino corpo não consegue sustentar nem mover. O Alfredo só conhece 2 posições nesta sua cama: virado para a esquerda, ou virado para a direita. Para a direita verá apenas uma parede e ouvirá os sons do hospital, para a esquerda verá o mundo, verá as cores das gentes, os sons da vida e tudo o que se move.
“Olha, o Alfredo hoje está virado para nós…” - exclama a Alice, no seu tom meigo e ainda pincelado com as nuances do Norte de Portugal que deixou há 7 meses. A Fátima sorri, com aquele sorriso que só quem nasceu na Terra dos Sorrisos pode ter. Aquele sorriso que a levou a desejar visitar um hospital, mesmo sabendo que irá precisar de 3 horas para regressar a casa para junto da sua família. Por agora, aquela é a sua família, e não importa como, ela está ali para os fazer também sorrir.
A Alice já não consegue largar o Alfredo, que entretanto se segurou às suas mãos dizendo provavelmente nas palavras que não consegue dizer: “Não vás embora…” A Fátima vai então percorrendo as outras camas, cumprimentando algumas destas mães, que deixaram para trás a restante família lá na longínqua província, em busca da solução para a sua menina ou menino.
“Esta mãe saiu da província há mais de um mês e a família nunca soube o que aconteceu”. Ela não tem dinheiro para umas bolachas, quanto mais para fazer um telefonema. Que esperarão os seus familiares ouvir do lado de lá da linha? O mais certo é ela regressar à aldeia com a capulana dobrada no saco, qual mãe derrotada pela inimiga doença que a separou precocemente da sua filha. Se regressarem as duas, será festa na aldeia certamente. O povo já está habituado que a doença vem no final. A morte é certa, a vida é uma dádiva. Por isso os moçambicanos, quando lhes dói a cabeça ou o estômago não dizem que estão doentes, mas apenas que estão “incomodados”. Doença é o passaporte para o não regresso a casa.
A Alice sugere e a Fátima propõe, falando em Xangana, o único dialeto que esta mãe conhece: “Olha, queres usar o nosso telemóvel para ligares para a província e dizeres que está tudo bem?” A sua cara expressou logo a revolução que acontecia dentro de si com aquela oferta. Não sabia como agradecer, depois de ter ouvido e de ser ouvida por aqueles lá longe, que contavam os dias e olhavam para a estrada poeirenta que lhes traria num final de dia, dentro de uma carrinha velha, as boas ou más noticias de uma mulher que tinha ido à cidade procurar o sonho de renovar uma vida.
A Alice continua agarrada ao Alfredo, como se fosse ela a conferir-lhe vida, sorrisos e oxigénio. “Vamos lá, Alfredo, vamos aprender a bater palminhas…". Mãos de uma mãe branca entrelaçadas nestas pequenas mãozinhas escuras, num banal gesto de quem ensina um magistral movimento para quem aprende. “Agora vamos aprender a cantar… a galinha põe o ovo e o Alfredo papa tuuuudo! Outra vez, Alfredo…”
“É tão difícil fazer isto quando o Alfredo está virado para o outro lado…”, desabafa a Alice. Nesses dias as atenções vão para os outros que querem ouvir as histórias da Bíblia que estas missionárias trazem na sacola. “Abre a mala, abre a mala...” diz a menina doente que já sabe onde está o livrinho das histórias.
As crianças pedem uma história, as suas mães pedem uma oração. Em qualquer um destes pedidos reside a esperança de passar mais um dia naquele hospital, com mais um sorriso ou menos uma lágrima. O Hospital de onde todos os dias saem e entram milhares de pessoas, e onde tantas ficam, sem saber se amanhã virá alguém, seja o pai ou a mãe, ou as missionárias da Pediatria.
A história do Alfredo, que também pode ser a história da Maria, da Raquel ou do Luís, é contada nesta cidade pelas missionárias Alice e Fátima que podiam chamar-se Joana, Sara ou Luísa. O único que nunca mudará nesta história é Aquele que lhes deu o motivo para fazerem as visitas ao hospital. O Deus que as amou primeiro e as ensinou a amar. O Deus que ama o Alfredo, a Maria, a Raquel e o Luís, em qualquer parte do mundo em que estejam, doentes ou não.
Este é o Deus, o único que é capaz de fazer desta história, uma história de amor.»
Esta história real e emocionante foi escrita pelo meu amigo Jorge Pratas, missionário em Moçambique e autor do blogue http://cronicasmozambique.blogspot.com/.
Esta história real e emocionante foi escrita pelo meu amigo Jorge Pratas, missionário em Moçambique e autor do blogue http://cronicasmozambique.blogspot.com/.
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