O testamento vital, mais do que uma “conquista civilizacional”, como alguns advogam, traduz uma diminuição crescente da confiança nos médicos nas sociedades desenvolvidas. O texto seguinte, escrito pelo Prof. Daniel Serrão, é uma excelente introdução a um assunto que está na ordem do dia:
Por “testamento vital” entende-se um documento, escrito por uma pessoa na plena posse das suas capacidades de decisão, no qual são apresentadas instruções sobre o que um médico pode ou não fazer, quando o subscritor do documento não estiver em condições de exercer a sua autonomia e o seu direito ao consentimento, após informação sobre o seu estado de saúde e sobre o que o médico lhe propõe para a tratar.
Fica claro que, neste documento, a pessoa tipifica, com maior ou menor rigor, os tratamentos que supõe que o médico lhe irá aplicar em futuras situações de doença, em que ela não possa ser informada e decidir. Por exemplo por estar em coma, não podendo receber uma informação médica correcta para poder decidir, dando ou não o seu consentimento. Por faltar esta informação actual sobre a situação real, decidir sobre uma hipótese de doença e uma hipótese de tratamento, envolve os maiores riscos para a pessoa. Pode admitir-se que a pessoa, se pudesse ser informada da real situação em que de facto se encontra, a sua decisão seria diferente da que está no tal testamento.
É também evidente que a redacção deste documento indica que a pessoa que o escreve não tem confiança na capacidade de o médico avaliar bem a sua situação e tomar a decisão mais adequada para proteger o seu melhor bem. Que pode ser, em alguns casos, interromper tratamentos fúteis ou inúteis e ajudar a pessoa, com o cuidado paliativo, a viver o seu processo de morte, com a maior dignidade.
Esta desconfiança não tem, em geral, qualquer justificação. Os médicos já sabem, hoje, reconhecer os limites do esforço terapêutico, sabem avaliar com rigor a incurabilidade e, na sua imensa maioria, dão aos doentes terminais o cuidado paliativo adequado a cada situação. As Unidades de Cuidados Intensivos praticam um intensivismo útil, racionalmente avaliado e eticamente ponderado, pelo que merecem a maior confiança dos cidadãos.
Se, não obstante, se quiser legislar em Portugal, como sucede em alguns Países europeus, a legislação tem de tomar em consideração os aspectos mais delicados das pessoas que decidem elaborar um destes documentos. Desde as formas de garantir que a declaração é autónoma, bem consciente e bem informada e que não há pressões externas que enviesem a decisão, até uma disposição clara sobre a impossibilidade de usar o testamento para tentar impor, ao médico, a prática da eutanásia ou do suicídio assistido, a lei terá de estabelecer, de forma juridicamente segura, que o médico vai tomar em consideração o que está escrito no testamento, mas que é ele quem tem a última palavra sobre o que vai, ou não, fazer à pessoa que está a seu cargo. Com testamento ou sem testamento, quando uma pessoa doente não está em condições de receber a informação e de dar ou não, o seu consentimento, é ao médico que cabe a responsabilidade de decidir. Segundo as boas práticas clínicas.
Na prática médica moderna e mais actualizada, a decisão terapêutica é um acto científico, não é um mero palpite do médico. Particularmente nas situações de muita gravidade. O testamento vital pode ter-se justificado no passado. Mas o progresso da ciência clínica tornou-o obsoleto, inútil e potencialmente perigoso para os doentes.