Apesar de, atualmente, o diagnóstico de morte cerebral ser o principal requisito para a obtenção de órgãos para transplante, de dadores cadáveres, em todo o mundo, o problema da definição e diagnóstico da morte ultrapassa o campo restrito da colheita de órgãos para transplantação.
Nunca é demais salientar que o conceito de morte cerebral não apareceu por mera conveniência, de modo a satisfazer as necessidades de órgãos de cadáveres para transplantes, mas sim como resultado da evolução dos conhecimentos da Ciência e da Medicina, que permitiram identificar esta nova entidade clínica. A situação de morte cerebral, embora originalmente designada coma dépassé, foi descrita pela primeira vez por Mollaret e Goulon (1959), numa altura em que a transplantação renal era ainda um procedimento experimental, efetuada sobretudo entre irmãos gémeos (dadores vivos) e acompanhada da irradiação maciça do receptor do órgão. Se, no futuro, surgirem novas modalidades de transplantação, como a xenotransplantação de porcos transgénicos, a transplantação de órgãos clonados ou a utilização de dispositivos mecânicos (estes últimos em fase experimental), que tornem dispensável e obsoleta a colheita de órgãos de cadáveres humanos, irão continuar a existir casos de morte cerebral, em doentes internados em Unidades de Cuidados Intensivos, que serão desligados do ventilador após a confirmação do óbito.
O conceito de morte cerebral não deve, pois, ser entendido numa perspetiva utilitarista, pois as evidências científicas da validade dos critérios de morte cerebral são o único fundamento que legitima este novo paradigma de diagnosticar a morte de uma pessoa. Deste modo, numa perspetiva ética, o respeito pela dignidade de quem se encontre efetivamente morto, bem como pelos doentes que poderão necessitar de vaga numa Unidade de Cuidados Intensivos, requerem um diagnóstico atempado e correto de morte cerebral.
Por outro lado, embora respeitando a decisão do doente, manifestada em vida, quanto ao destino dos seus órgãos após a morte, concordamos com Hodelín-Tablada (2001), quando refere que «se se está morto, é um gesto altruísta e de altos valores éticos oferecer os nossos órgãos e tecidos para aqueles doentes que têm limitações na sua vida por mau funcionamento de um órgão ou tecido».
Uma outra área em que é necessário “separar as águas” consiste na necessidade das provas de morte cerebral serem efetuadas por médicos que não estejam diretamente envolvidos na atividade de transplantação de órgãos, de modo a assegurar maior independência e idoneidade, e evitar eventuais conflitos de interesses. Esta norma encontra-se claramente expressa em diversos códigos nacionais e internacionais de ética e deontologia médicas, desde a Declaração de Sydney (1968), da Associação Médica Mundial, bem como na legislação portuguesa (Diário da República, 1994). Nesta linha de raciocínio, defendemos que os médicos diretamente envolvidos na atividade de transplantação se devem abster de participar em comissões constituídas para tomarem decisões acerca do diagnóstico de morte. Infelizmente, tal não aconteceu com a Comissão de Harvard, sobre Morte Cerebral, na qual participaram cirurgiões envolvidos na transplantação de órgãos, como Joseph Murray e John Merril, pioneiros da transplantação renal, o que suscitou diversas críticas.