02/07/14

MEDICINA E LITERATURA (3.ª parte)

Pelo que acabo de muito sucintamente expor, facilmente se entenderá que não concebo a relação entre Medicina e Literatura na base da eventual evasão ou do mero lazer (embora, claro, a leitura de textos literários faça parte para maioria dos seus tempos livres), nem tão pouco como uma espécie de complemento de erudição opcional e decorativa. O que está em jogo quando se cruzam estas duas áreas do conhecimento e respetivos quadros epistémicos e retóricos, é tão importante e complexo quanto a compreensão e representação da vida humana nas suas diferentes e complementares vertentes, pelo que não se deverá ficar por um simples voluntarismo de horas vagas ou de vagas afinidades.

De resto, o aturado estudo do Doutor Jorge Cruz a partir da obra de Edmund Pellegrino, mostra bem que não bastam nem ideias imprecisas, vulgo preconceitos, nem legislações muito sofisticadas - por muito bem intencionadas que umas e outras possam ser - para que estejamos perante uma Medicina radicada em valores humanistas e éticos.

Em primeiro lugar, importa que saibamos exatamente o que está em causa por detrás dos princípios, modelos e termos, expressos ou subjacentes a diferentes práticas de Medicina. Depois, importa ter em conta as dificuldades que se apresentam na passagem das teorias às práticas. Nesse sentido, enquanto leitora e cidadã, (e até agora pelo menos, pontualmente paciente ou familiar de pacientes), a explicitação do chamado “paradigma das virtudes” foi para mim muito esclarecedora. Não que eu não tivesse já intuído que um médico deverá ter certos traços de carácter como a prudência ou a justiça, mas o enquadramento e explicitação dessas e outras “virtudes” permitiu-me tomar consciência de diferentes pressupostos e consequências na formação dos médicos e no decurso do exercício da sua atividade; permitiu-me encontrar termos mais adequados e fundamentados para dirimir argumentos e para me envolver naquela pergunta que dá título ao livro de Jorge Cruz - “Que médicos queremos?” - fazendo-o não de uma forma mais ou menos emotiva e volátil, como tantas vezes se assiste na praça pública, mas de um modo mais consciente e consistente.

Julgo que este acesso às palavras adequadas (como aquelas a que a Literatura também tantas vezes dá acesso), esta consciência de valores estruturantes de uma prática tão nobre como a prática médica, pode vir a reunir quer pacientes e sociedade em geral num propósito comum traduzível no completar do título com o verbo ter - “que médicos queremos ter?” –, quer aqueles que, pelas suas funções, a completarão com o verbo ser – “que médicos queremos ser?”. Parece-me evidente que só quando houver, ou sempre que houver, essa conjunção de vontades e de expetativas, existirá uma verdadeira relação clínica em prol do humano. Tanto da humanidade do paciente como da humanidade do médico.

Prof. Doutora Ana Paula Coutinho
Professora Associada do Departamento de Estudos Portugueses e Estudos Românicos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Doutorada em Literatura Comparada. 

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