31/03/14

ASMA – UMA DOENÇA TRATÁVEL


Este artigo foi escrito pela minha estimada amiga e colega Dr.ª Adelina Amorim, especialista em Pneumologia.
 
A asma é uma doença inflamatória crónica que afeta os brônquios e que se caracteriza por episódios recorrentes de limitação da passagem de ar. Poderá ser alérgica ou não.
 
Quem afeta?
 
Calcula-se que a asma afeta cerca de 300 milhões de pessoas no mundo, sendo mais frequente nos países ocidentais, nas áreas urbanizadas.
A asma pode ocorrer em qualquer fase da vida, embora seja mais comum desenvolver-se na infância. Estima-se que em 30-50% das crianças os sintomas da asma desaparecem durante a puberdade mas é comum ressurgir na idade adulta. Até aos 14 anos a asma é quase duas vezes mais frequente nos rapazes mas na vida adulta as mulheres são mais afetadas.
 
Como se manifesta?

A doença manifesta-se principalmente por episódios de falta de ar e tosse, particularmente à noite ou no início da manhã. Pode também ser percetível  ao doente a presença de pieira (“gatinhos”, “chiadeira”) e sentir aperto ou sensação de peso no peito. Nem sempre estão presentes todas estas queixas, havendo casos, por exemplo, em que tosse seca persistente e com agravamento preferencial à noite pode ser uma manifestação de asma. O agravamento noturno tem sido atribuído a variações dos níveis de certas hormonas ao longo das 24 horas, bem como à redução durante a noite de mecanismos anti-inflamatórios do nosso organismo. Os sintomas podem melhorar espontaneamente ou através de medicação adequada.

As queixas referidas ocorrem também noutras doenças pulmonares, pelo que o diagnóstico final baseia-se na história clínica e também no resultado de alguns exames, sendo os mais importantes as provas funcionais respiratórias e os testes cutâneos e/ou sanguíneos de alergias.

A gravidade da asma é variável sendo classificada em 4 graus: intermitente e persistente ligeira, moderada ou grave. É importante que os doentes saibam que mesmo as formas mais leves podem associar-se a crises graves, potencialmente fatais.

Quais as causas e fatores de risco?

Muitos doentes ou pais se questionam sobre o porquê do aparecimento da asma. A verdade é que nem sempre a resposta que o médico dá é clara ou satisfatória e isto deve-se, em grande medida, ao facto de se tratar de uma doença multifatorial e com mecanismos subjacentes complexos e ainda não totalmente conhecidos.

 Os vários fatores que influenciam o risco de asma podem-se agrupar nos que causam a doença e nos que levam ao aparecimento dos sintomas, ou seja, ao desenvolvimento das crises de asma. De forma resumida a doença manifestar-se-á nas pessoas que têm um predisposição genética mas após exposição a fatores ambientais de risco. É, portanto, consequência de uma complexa interacção de múltiplos genes e o ambiente.

A obesidade tem sido apontada como factor de risco, sendo mais frequente e mais difícil de a controlar em doentes obesos.

Algumas características da alimentação dos países ocidentais também têm sido associadas ao risco de asma, tais como, o aumento do consumo de alimentos processados, de gorduras polinsaturadas n-6 (existente nas margarinas e óleo vegetal) e a diminuição do consumo de antioxidantes (contidos nas frutas e vegetais) e gorduras polinsaturadas n-3 (presente no óleo de peixe). Alguns dados apontam para que a amamentação materna tenha um papel protetor para o desenvolvimento de asma.

Certas profissões têm sido associadas ao risco de aparecimento de asma e, até à data, mais de 300 substâncias já foram identificadas. Como exemplo de algumas atividades de risco são o fabrico de detergentes, de conservas de peixe, os trabalhadores hospitalares, de serrações, de aviários, de silos de cereais, de refinarias, carpinteiros, padeiros, veterinários, estivadores, agricultores, esteticistas, etc.

Os sintomas podem surgir ou ser agravados  pelo exercício físico, poluição, condições climáticas, infeções víricas, exposição ao tabaco, stress emocional, riso e alergénios inalados.

A origem dos alergénios inalados pode ser o ambiente doméstico ou a natureza. No primeiro grupo incluem-se os ácaros como principal fonte, seguido dos animais domésticos, das baratas e dos fungos ou bolores. Dentro dos animais domésticos o gato é o mais importante, seguido do cão e por fim de outros animais de estimação como hamsters e coelhos. Os alergénios encontrados na natureza mais comuns são os pólens de árvores (mais na Primavera) e de ervas (mais na Primavera e Verão) .

Como tratar?

Para que um doente adira a um tratamento, em qualquer patologia, é importante que este entenda minimamente o que é a doença, qual o objetivo do tratamento e como deve tomar a medicação. Na asma esta verdade assume ainda uma maior importância, dado ter um comportamento muito variável ao longo do tempo e consequente necessidade de ajustes frequentes das doses e mesmo do tipo de fármacos. Quando o doente estabiliza tem tendência a reduzir ou mesmo parar a medicação, levando a recaídas frequentes.

Outro motivo que ressalta a importância do ensino relaciona-se com o facto de  grande parte da medicação ser administrada através de inaladores (comummente designados pelos doentes de “bombas”), cujo funcionamento correto exige um esclarecimento adequado.

Apesar de haver no mercado atualmente grande variedade de inaladores, eles podem ser agrupados nos de alívio, que correspondem a broncodilatadores e nos de efeito anti-inflamatório, de ação preventiva, sendo os corticóides os mais importantes.  

Há uma tendência dos doentes optarem pelo uso exclusivo dos broncodilatadores, uma vez que com estes sentem alívio imediato da falta de ar. Em doentes com sintomas intermitentes isto poderá ser suficiente mas em grande parte dos casos não é e se não for associado o corticóide inalado, ou outros fármacos de ação anti-inflamatória, dificilmente se consegue o controlo da doença.  Para contrariar esta tendência atualmente estão disponíveis inaladores que combinam ambos os fármacos. É muito importante que o doente siga estritamente o plano recomendado pelo seu médico assistente e compreenda bem para que servem e como funcionam os inaladores prescritos.

Nos doentes que também têm rinite, o que corresponde a 80% dos doentes com asma,  o tratamento nasal adequado contribui também para o controlo da asma.

Como prevenir?

Prevenir as crises de asma é o meio mais eficaz de controlar a doença. Para prevenir eficazmente é necessário em primeiro lugar identificar os fatores desencadeantes das exacerbações e aprender a evitá-los.

No caso de se tratar de asma alérgica, com  sintomas associados à exposição e comprovação através de testes adequados para o(s) alergénio(s) em causa, deverão ser cumpridas as medidas de evicção recomendadas.

Quando os acáros são o principal alergénio as medidas para os evitar centraliza-se particularmente nos cuidados de higiene da cama do doente, mas idealmente toda a casa deve ser alvo de cuidados especiais. Os lençóis e cobertores devem ser lavados semanalmente com água quente (>55ºC),  os colchões e almofadas devem ser protegidos com cobertas, deve-se evitar mobiliário revestido com tecido, as cortinas e peluches devem ser lavados frequentemente e é conveniente retirar tapetes, em particular dos quartos de dormir.

Se a causa forem alergénios animais, estes devem ser retirados de casa ou pelo menos devem ser mantidos fora dos quartos de dormir e devem ser lavados semanalmente.

No caso dos pólens deve-se fechar as portas e janelas de casa, ou do carro se em viagem, quando os valores atmosféricos destes alergénios forem mais elevados.

O número de esporos de fungos pode ser reduzido removendo ou limpando objetos bolorentos.

Quanto a medidas gerais, aplicáveis a qualquer asmático, consta o não fumar, evitar a exposição passiva ao fumo de tabaco, a exposição a fumo de lenha (churrascos/lareiras), sprays domésticos, manter a casa bem ventilada e com baixa humidade e fazer anualmente a vacina da gripe.
 
Dr.ª Adelina Amorim
Pneumologista no Centro Hospitalar de S. João, Porto, Portugal.

25/03/14

COMER LARANJAS À NOITE FAZ MAL?





“A laranja de manhã é ouro, à tarde é prata e à noite mata!”

Toda a gente conhece esta frase, que relaciona hipotéticos benefícios e/ou riscos da ingestão de laranjas com determinadas alturas do dia. Com efeito, o que esta frase pretende afirmar é que, se decidirmos comer laranjas, então a parte da manhã será a altura em que ela será mais benéfica, diminuindo ao longo do dia o seu efeito positivo, sendo mesmo perigosa a partir do pôr-do-sol…

Uma pesquisa da literatura biomédica sobre este tema nada revelou, isto é, não há estudos científicos que tenham analisado tal questão, pelo que nos resta apresentar e discutir a origem deste “provérbio” (definido como uma sentença de carácter prático e popular, que expressa em forma sucinta, e não raramente figurativa, uma ideia ou pensamento...) e analisar sob o ponto de vista médico eventuais problemas com a ingestão de laranjas.
 
A origem desta frase é desconhecida, mas parece ter sido criada no século XIX, tendo adquirido vida própria – como acontece tantas vezes – e estando hoje absolutamente disseminada entre nós. Tem sido passada de geração em geração, condicionando de facto as horas de ingestão deste citrino.

A laranja possui, para além da conhecida vitamina C, muitos outros componentes (pectinas, açúcar, etc.), pelo que uma análise exaustiva dos seus efeitos nutricionais seria impossível de fazer neste texto. Uma coisa é certa: fisiologicamente falando, não faz qualquer sentido pretender que a altura do dia em que se come laranjas influencia o seu efeito sobre o organismo.

E que benefícios poderá haver em ingerir laranjas? Vários: para além de uma dieta rica em frutas e vegetais ser recomendável como parte de um esquema de prevenção do risco cardiovascular (como parte da chamada dieta mediterrânica), por exemplo os doentes com nefrolitíase (“pedras nos rins”) podem ter um efeito positivo, devido ao facto dos citrinos diminuírem a formação das tais “pedras” (Kidney Int 2004;66:2402-10).

E a vitamina C? Este componente das laranjas vem sempre a talho de foice quando se fala em dietas equilibradas e é a justificação maior para a ingestão de laranjas (e limões, já assim). Faz parte – juntamente com as vitaminas A e E – do grupo das chamadas vitaminas antioxidantes e têm-lhe sido atribuídas as mais variadas propriedades benéficas.

No entanto, sob o ponto de vista científico, a suplementação dietética de vitamina C é não só inútil, como potencialmente prejudicial: não existe evidência científica que ela proteja contra o risco de cancro (J Natl Cancer Ins 2009;101:14-23) e que seja útil para a prevenção da doença coronária (JAMA 2008;300:2123-33) ou de acidente vascular cerebral (Ann Intern Med 1999;130:963-70). E um outro mito que a vitamina C seria benéfica na vulgar constipação não é apoiada por nenhum facto científico de boa qualidade (Cochrane Database Syst Rev 2007 Jul 18;(3):CD000980).

Que concluir? Se gosta de laranjas, pode comê-las à vontade, independentemente das horas a que o faz!

Prof. Doutor António Vaz Carneiro
Programa Harvard Medical School Portugal

24/03/14

SEI O QUE É A EUTANÁSIA?


O texto seguinte foi elaborado por uma comissão de trabalho na qual tive o prazer de participar, sob a égide da Associação Vida Norte. O principal objetivo desta mensagem é ajudar a esclarecer a população portuguesa acerca da eutanásia, um assunto muito falado mas pouco conhecido.

 
Sabia que em Portugal é legal e considerado boa prática:

Respeitar a vontade do doente que, de uma forma esclarecida, pede para suspender tratamentos ou retirar meios artificiais de suporte à Vida.

Evitar o “encarniçamento” ou “obstinação terapêutica”, ou seja, não sujeitar o doente a tratamentos ineficazes ou de benefício duvidoso.
 
Desligar o ventilador ou outro meio de suporte vital nas situações de morte cerebral, determinada de acordo com os critérios definidos por Declaração da Ordem dos Médicos prevista no artigo 12º da Lei nº 12/93 de 22.04.

Usar morfina ou medicamentos similares para tratar a dor intensa, bem como usar sedativos para aliviar sintomas não controlados de outra forma.

Prestar Cuidados Paliativos a quantos deles puderem beneficiar.

Nada disto é eutanásia!

Eutanásia é a morte de um doente provocada intencionalmente pela ação (ou omissão) de um profissional de saúde, a pedido do doente para alívio do seu sofrimento.

Saiba ainda que:

De todos os países do mundo, só a Holanda, a Bélgica e o Luxemburgo têm a eutanásia legalizada.

Em Portugal, provocar ou acelerar a morte de uma pessoa doente é homicídio (artº 133º, 134º e 138 º do Código Penal Português).

Já existe uma lei que regula a possibilidade de manifestar a sua vontade sobre os cuidados de saúde que deseja ou não receber caso fique incapaz de expressar autonomamente essa vontade – TestamentoVital (DL nº 25/2012).

20/03/14

A SAÚDE NA PINTURA


Alfredo Roque Gameiro foi um pintor e ilustrador português, especializado na arte da aguarela. Nasceu em 1864 em Minde, no concelho de Alcanena, e faleceu em 1935 em Lisboa. Estudou na Escola de Belas-Artes de Lisboa, onde foi discípulo de Manuel de Macedo, Enrique Casanova e José Simões d’Almeida. Frequentou de 1893 a 1895 a Escola de Artes e Ofícios de Leipzig, como bolseiro do Estado português. De regresso a Portugal, assumiu a Direcção artística da Companhia Nacional Editora e posteriormente exerceu actividade docente na Escola Industrial do Príncipe Real. Considerado “Mestre insigne da aguarela”, deixou um vasto legado de obras de grande beleza e requinte, tendo obtido diversos prémios e distinções, nacionais e internacionais.
 
Iniciou a sua actividade como ilustrador em 1888, pintando ao longo da sua vida inúmeras aguarelas para diversas publicações, tanto de carácter histórico e etnográfico como literárias. A maior parte do seu espólio encontra-se no Museu de Aguarela Roque Gameiro, que inclui obras do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em depósito.
 
 “Este cavalheiro era João Semana” é uma das várias aguarelas que Roque Gameiro concebeu, entre 1904 e 1905, para ilustração do romance de Júlio Dinis As Pupilas do Senhor Reitor. Representa, de forma realista, a personagem João Semana, médico de aldeia, montado no seu inseparável ginete, que até meados do século XX era o meio de locomoção privilegiado dos médicos que exerciam clínica no meio rural, nas frequentes visitas domiciliárias.
 
Júlio Dinis, pseudónimo literário de Joaquim Guilherme Gomes Coelho (1839-1871), concluiu o curso de Medicina com distinção em 1861 na Escola Médico-Cirúrgica do Porto e integrou o corpo docente desta instituição a partir de 1865. A tuberculose pulmonar de que padecia desde a juventude (teve a primeira hemoptise no 2.º ano do curso), foi responsável pela sua morte prematura aos 31 anos. A doença levou-o a procurar climas mais propícios ao repouso e convalescença. Deslocou-se algumas vezes por esse motivo à vila de Ovar, donde era natural seu pai, e ao Funchal, escrevendo algumas das suas obras durante os curtos períodos em que permaneceu nestes locais. É considerado um dos maiores romancistas da literatura portuguesa do século XIX.
 
Egas Moniz, no seu livro notável Júlio Dinis e a sua obra, identificou em Ovar as gentes e os lugares que terão servido de inspiração para As Pupilas do Senhor Reitor, o primeiro romance publicado do escritor. Para o distinto professor, “o João Semana das Pupilas é o retrato fiel do cirurgião João José da Silveira, que, ao tempo da estadia de Júlio Dinis em Ovar, exercia a profissão médica com grande sucesso, naquela região”. Segundo Egas Moniz, o Dr. Silveira “era um clínico dedicado aos seus doentes como mais se não podia ser. Fosse a que hora fosse, em noite tempestuosa de inverno, ou à hora dos frugais repastos, estava sempre pronto a interromper o sono reparador ou a refeição principiada para acudir às chamadas dos doentes”.
 
Maria José Oliveira Monteiro, em Júlio Dinis e o enigma da sua vida, considera que muitas figuras das obras dinisianas correspondem a pessoas reais da povoação de Grijó, onde o escritor passou grande parte da infância, após o falecimento da sua mãe, também vítima de tuberculose. Na opinião da autora, o celebrado João Semana apresenta afinidades com o Dr. Joaquim Silvestre Correia da Silva, estimado pela população local pela sua personalidade alegre e divertida, bem como pelo seu carácter de benfeitor dos mais desfavorecidos. Nas suas palavras, “sendo o único cirurgião formado de mais saber e fama que nesta época existia em Grijó e imediações, podia ter adquirido boa fortuna num tempo em que os médicos eram raros, porém era um mãos largas para todos, e à maior parte do povo não levava dinheiro nem avença”.
 
Seja como for, o que parece seguro é que a personagem João Semana, uma das mais conhecidas e apreciadas de toda a obra do escritor, não representa um ideal utópico e irrealista, mas foi concebida a partir de clínicos reais inteiramente dedicados ao serviço dos doentes. Numa época em que o tratamento da maioria das enfermidades era muito elementar e pouco eficaz, era ainda mais pertinente o aforismo dos médicos franceses Bérard e Gubler, “curar por vezes, aliviar muitas vezes, consolar sempre”.
 
João Semana reúne as virtudes da generosidade, altruísmo, beneficência e sentido de humor, essenciais na relação médico-doente ao longo da história da humanidade. Tal atitude contrasta com a de alguns clínicos, denunciada em outros clássicos da literatura, de paternalismo arrogante, avidez pelos bens materiais, competição feroz ou ambição desmesurada pelo poder e influência, que tem levado alguns profissionais a sacrificarem a nobre vocação médica no altar da fama, do lucro ou do poder.
 
A humanização dos serviços de saúde requer que os profissionais estejam conscientes da importância fundamental de virtudes como a empatia, o cuidado, a beneficência ou o altruísmo, na relação assistencial médico-doente.
 
A personagem João Semana, retratada nesta aguarela, representa uma justa homenagem a todos os clínicos portugueses que, ao longo dos tempos, consideraram o serviço dedicado aos doentes a razão suprema da sua profissão.
 
(Este artigo foi publicado na 1.º edição de 2014 da Acta Médica Portuguesa, a Revista Científica da Ordem dos Médicos. A versão original, com as referências bibliográficas, pode ser obtida aqui).

19/03/14

ENVELHECER COM SENTIDO

Há que descobrir o sentido do envelhecimento. Muitos pretendem a todo o custo minimizar as marcas do envelhecimento, sobretudo da senescência corporal, às vezes à custa de procedimentos que carecem de prova científica e que até podem ser prejudiciais. São de louvar os estilos e práticas de vida que, sendo saudáveis, podem reduzir a marcha do processo de senescência, mas a procura de uma juventude permanente, além de irracional, faz do envelhecimento um tabu, quando afinal devemos acolher a velhice enquanto processo que leva a uma realização mais plena da pessoa. Como bem refere Andrew Weil, o envelhecimento e, com ele, a perspetiva mais aguda da própria mortalidade podem e devem suscitar um importante aprofundamento espiritual.
 
O envelhecimento será então sentido não como um fardo, mas como uma oportunidade. Será tempo de olhar para diante com confiança e, na minha mundividência, com esperança, aquela que levou Michel Renaud a dizer: “até ao seu último momento, a vida humana está aberta ao seu futuro”. Mas para todos, com ou sem esta mundividência cristã, a velhice é tempo de viver com atitude positiva, colhendo na anciania o que ela nos dá de muito bom e que levou o poeta Robert Frost a afirmar: “A tarde conhece aquilo que a manhã nunca suspeitou”. O segredo desvelou-o Albert Schweitzer quando disse: "Os anos enrugam a pele, mas renunciar ao entusiasmo enruga a alma."
 
Prof. Doutor Henrique Vilaça Ramos

17/03/14

QUALIDADE DE VIDA E VALOR DA VIDA


A qualidade de vida é hoje um tema que concita grande interesse dos investigadores sociais e de muitos outros, mas a sua ponderação terá de respeitar sempre o valor primeiro e inviolável da própria vida. É obviamente desejável assegurar a melhor qualidade de vida possível a todo o ser humano. Porém, esta preocupação legítima pode levar, e tem levado, a um desvio ético que põe em causa o respeito pela vida humana, denominador comum a todas as culturas, aliás consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Como assinala Ciccone, a teoria da qualidade de vida já levou muitos à iníqua distinção entre vida com valor e vida sem valor, numa distorcida visão antropológica em que “a vida só goza de valor se estiver na posse, ou puder recuperar, certas condições de eficiência, de produtividade e de bem-estar: sem essas condições, a vida apresentar-se-ia carecida de sentido e de valor”.
  
A qualidade de vida pode ser afetada por fatores de vária ordem: a saúde, as condições económicas, etc. Mas, se para a satisfação pessoal conta, obviamente, o modo como cada um encara as eventuais limitações verificadas nesses campos, não pesam menos as relações interpessoais, a manutenção de interesses, a convicção de que ainda se é útil e, de um modo geral, as emoções positivas. Afinal, mais do que a situação de doença e as suas limitações, são outros os fatores que fazem toda a diferença. A velhice, envolvida numa boa rede de relações interpessoais e alimentada com pensamentos positivos, é afinal um período que será vivido como uma fase bem agradável do nosso percurso de vida.

Prof. Doutor Henrique Vilaça Ramos

13/03/14

QUALIDADE DE VIDA NA VELHICE

O tema do estilo de vida introduz um outro: o da qualidade de vida na velhice. Será que podemos afirmar que a velhice significa má qualidade de vida? Se considerarmos que a senescência progressiva traz consigo restrições que podem atingir a capacidade de comunicação visual e verbal, afetar o desempenho intelectual ou prejudicar o estado geral, através de múltiplas noxas, teremos tendência a dar resposta positiva àquela pergunta. De facto, aquele cortejo de restrições é responsável pela perceção negativa que se tem do envelhecimento, sobretudo numa sociedade onde os valores dominantes são o culto da juventude, do belo, do vigor e do brilho intelectual. Porém, a imagem que se tem dos idosos está longe de coincidir com a que eles têm de si próprios: a sua autoimagem é quase sempre melhor. Na verdade, muitos idosos que têm algumas limitações desfrutam, apesar disso, de um estado de saúde razoável e conseguem conviver bem com as restrições que elas lhes impõem. Alguns até referem uma melhoria de vida com a idade e não uma pioria. É exemplo disso um estudo finlandês sobre cerca de 250 mulheres pós-menopáusicas, analisadas em duas épocas separadas de dez anos, revelando que a satisfação com a saúde foi idêntica nos dois momentos, isto apesar do estado de saúde de muitas ser pior no segundo (a percentagem das que padeciam de angina de peito subiu de 6 para 20%). Curiosamente, a avaliação que estas mulheres pós-menopáusicas fizeram da sua capacidade física (capacidade de corrida) melhorou, apesar de objetivamente ela se ter reduzido. Isto mostra até que ponto a avaliação da qualidade de vida é mais dependente de fatores subjetivos que dos objetivos.
                       
Grande parte da bibliografia sobre a qualidade de vida assenta na avaliação da qualidade de vida dos outros. Ora, a qualidade de vida só pode ser corretamente avaliada na primeira pessoa. A vida é um valor universal, mas é vivido na singularidade de cada um. Só o próprio pode dizer como é a sua vida. Não surpreende, por isso, que a visão dos outros seja muito distinta de quem vive a situação em causa. Neste contexto, é preferível falar de satisfação de vida que de qualidade de vida, pois se torna mais evidente o seu carácter subjetivo. Frequentemente, grandes limitações que aos nossos olhos, de observador externo, deveriam ser insuportáveis, são vividas pelo sujeito delas com espantosa aceitação.
 
A minha mãe teve uma vida centenária. Faleceu um mês depois de ter celebrado os 100 anos e até aos 90 esteve bem. Além de problemas cardíacos sérios, várias mazelas se foram acumulando depois, a começar pela perda de audição, continuando com a cegueira total e terminando com a falência de forças que a levou a estar acamada nos últimos anos. Reduzida ao leito, sem ver e quase não ouvindo, a sua vida de relação estava de tal modo comprometida que quem a via poderia pensar: não tem qualidade de vida. No entanto, ela considerava-se feliz. Às vezes dizia: “Deus nosso Senhor esqueceu-se de mim”. Mas logo acrescentava: “Enquanto me quiser cá, eu estou bem”.
 
Como vemos, limitações muito graves, parecendo a quem vê de fora que deviam levar o idoso a lamentar a sua qualidade de vida, são frequentemente aceites com surpreendente tolerância, considerando ele que tem uma qualidade de vida bastante satisfatória. Por isso, deve ser encarada com a maior reserva a avaliação da qualidade de vida feita por outros, ainda que sejam os seus próximos ou o pessoal de saúde. Em circunstâncias deste teor, nem é raro que a compaixão mal direcionada leve pessoas que amam o idoso a julgar que a morte lhes seria desejável.
 
Prof. Doutor Henrique Vilaça Ramos

10/03/14

SOLIDARIEDADE DE ESTILOS DE VIDA

A questão da solidariedade entre diferentes camadas populacionais surge também noutra área, a da solidariedade de estilos de vida. É sabido que há toda uma série de condições que dependem de nós e que se ligam com os nossos comportamentos nas várias décadas que precedem a velhice. Dizia La Bruyère que “a maioria dos homens emprega a melhor parte da sua vida a tornar a outra miserável”. Com efeito, boa parte do que é o envelhecimento decorre do estilo de vida que cada um assume no seu percurso. Este facto levou a que se levantasse a questão da chamada solidariedade de estilos de vida que corresponde à solidariedade dos que levam uma vida regrada para com os que comprometeram a sua saúde pelo modo como viveram. Ora, há quem defenda que a sociedade não tem de ser solidária para com os que se conduzem de tal sorte que se transformam num encargo maior para a comunidade.
 
Este é um tema que se tornou mais visível nos últimos anos, mas que é criticável no plano científico e no plano ético. No campo científico porque as doenças que podem ser causadas por um comportamento de risco podem reconhecer também outras causas. Por isso, quando surge a doença num indivíduo concreto, não é fácil garantir que ela se deva necessariamente ao seu comportamento. No plano ético são de ponderar vários aspetos. Desde logo o facto de, na base de atitudes perigosas para a saúde, poderem estar envolvidas causas genéticas ou mentais que condicionam as ações da pessoa e pelas quais ela não é verdadeiramente responsável. É também de ponderar que as limitações resultantes de um estilo de vida inapropriado são já um ónus pesado para aqueles que lhe vão sofrer as consequências. Além disso, é também um critério de justiça, porque todos podem precisar, mesmo aqueles de vida regrada, pois isso não os torna imunes às doenças habitualmente associadas a comportamentos de risco. Mas a razão mais importante é que, qualquer que seja a pessoa e por maior que seja a sua degradação física ou mental, ela conserva íntegra a sua dignidade original, a dignidade inerente a todo o ser humano, dignidade que terá sempre de ser respeitada.
 
Finalmente, os que põem em causa aquela solidariedade não tomam em consideração um curioso paradoxo. É que os que levam uma vida regrada são geralmente mais longevos, andarão por cá muitos anos, eventualmente gozando, durante muito tempo, de reformas e outros benefícios distribuídos pela sociedade. Em contrapartida, os que põem em risco a sua saúde, viverão menos e até poderão nem chegar à idade da reforma, assim sobrecarregando menos a comunidade ou tendo sido mesmo contribuintes líquidos.

Prof. Doutor Henrique Vilaça Ramos

06/03/14

A PROGRESSÃO DA ESPERANÇA DE VIDA

Face ao progressivo aumento da esperança média de vida, podemos perguntar se esta linha ascendente se vai manter e até quando? Extrapolando a partir dos dados existentes, iremos ultrapassar os 100 anos antes do fim deste século. Mas há motivos para duvidar que assim seja. É que a civilização, que nos trouxe a melhoria das condições responsáveis pela atual longevidade, vai provavelmente cobrar o seu preço.
 
Refiro-me especialmente à obesidade, verdadeira epidemia das sociedades evoluídas que hoje já invade a própria idade juvenil e pode constituir um poderoso travão do aumento da expectativa de vida, quiçá a sua redução, pois é bem sabido que a obesidade constitui um importante fator de risco de diversas patologias. Mas à obesidade juntam-se outros elementos deletérios, como os comportamentos de risco (a praga das drogas, os hábitos alcoólicos desde a juventude, o sexo promíscuo e desprotegido, etc.) e também fatores de stress emocional, cada vez mais numerosos na nossa sociedade, a ponto de se considerar que este será o século das patologias de fundo emocional, como sejam: a escassez de postos de trabalho, característica das sociedades evoluídas, geradora de uma competição impiedosa e de sujeição a ritmos de trabalho excessivo que transmudam o trabalho numa forma de desumanização  ou então lançam a pessoa no flagelo do desemprego de longa duração que é outra forma, ainda mais grave, de desumanização; o fenómeno da urbanização de camadas populacionais cada vez mais vastas, com a correspondente tensão das grandes colmeias humanas e a formação de guetos sociais e de paradoxal isolamento, a desestruturação das famílias que aumenta o número das pessoas em solidão  e que leva a que “as poucas crianças, a quem hoje é permitido nascer”, sejam “educadas numa precariedade familiar… difícil de imaginar”. Todos estes fatores fragilizam o homem moderno e comprometem a sua saúde, pondo em risco a linha de progressão contínua que temos vindo a registar.
 
Mas há ainda outro elemento que poderá intervir negativamente. Para ilustrar isto ocorre considerar a nossa pirâmide etária que mostra uma redução drástica da população abaixo dos 25 anos. Ora, as necessidades da população idosa recaem, em larga medida, sobre as pessoas entre os 25 e os 64 anos, que hoje correspondem a 55,1% da nossa população. Quando se der a substituição da população ativa por esta população jovem, muito mais reduzida, será problemático manter os níveis de cuidados que hoje são prestados aos idosos, comprometendo assim a esperança de vida. Esta dificuldade advém da reduzida natalidade portuguesa.

A queda da natalidade em Portugal é progressiva desde há muitas décadas, pelo que a é já a mais baixa da Europa ocidental, de tal sorte que desde 2007 temos menos nascimentos do que óbitos. E não se diga que são as circunstâncias económicas que estão na base desta reduzida natalidade, pois que no mesmo período de vinte anos o nosso produto per capita cresceu para mais do dobro. É perturbador verificar que é nas sociedades marcadas pela abundância que se verifica a queda da natalidade. Não afirmo que haja uma relação necessária de causa e efeito entre estes dois factos, mas não se pode negar esta evidência: são as “sociedades opulentas” as que estão em risco por redução da sua população jovem. E se John Kenneth Galbraith dizia que na sociedade opulenta não se pode fazer nenhuma distinção válida entre os luxos e as necessidades, talvez possamos acrescentar, parafraseando, que na sociedade opulenta os filhos deixam de ser uma necessidade e passam a ser um luxo. Temos tendência a ver a árvore e não a floresta, o que nos leva a crer que os nossos maiores problemas residem na situação financeira, na estagnação da economia, no marasmo da justiça ou na educação deficiente que proporcionamos a muitos dos nossos jovens. Mas o grande problema nacional é, na verdade, esta bomba-relógio demográfica que já está nas nossas mãos descuidadas, que não sabemos como desativar e que nem estudamos seriamente para lhe encontrar soluções, talvez porque estas impliquem o desmontar de alguns preconceitos ideológicos, tarefa em si mesmo difícil e por muitos indesejada. O comentário adequado é a célebre frase “e pur si muove”, atribuída a Galileu. O risco da falta de solidariedade intergeracional só pode vir a agravar-se nessas circunstâncias, com os ainda ativos a perguntarem aos mais idosos como poderão ajudá-los se eles são tão poucos para tantos velhos.

Prof. Doutor Henrique Vilaça Ramos

03/03/14

A IMORTALIDADE DO SER HUMANO


Há quem conceba o envelhecer como doença, daí decorrendo a marcha progressiva para a morte. A aceitar essa perspetiva, pode admitir-se que, do mesmo modo como temos vindo a tratar e curar cada vez mais doenças, também o envelhecimento será curável ou prevenível. Então, será o Homem potencialmente imortal? Os teólogos já sabiam da imortalidade do Homem, mas o que aqui se pondera é a imortalidade do corpo humano, a imortalidade biológica. Esta perspetiva vai ao arrepio do que é a experiência humana ao longo dos milénios. Isso mesmo vimos em Séneca que afirmava ser a velhice uma doença incurável. Neste contexto, poderíamos citar também  Heidegger e a sua famosa frase “Sein zum Tode”, exprimindo igualmente a ideia de que o Homem é um ser para a morte (ou que está à morte, segundo outra tradução). Também Galeno na Grécia, o chinês Ge Hong, que viveu no séc. IV, Roger Bacon, já do séc. XIII, e muitos outros antigos acreditaram na imortalidade do Homem. Mas como acentuou Olshansky, o que há de comum a todos eles é que estão mortos. Nos nossos dias, tornou-se célebre Aubrey de Grey, geneticista de Cambridge, porventura o mais mediático dos defensores desta potencial imortalidade, que afirmou: “a maioria das pessoas que hoje têm 40 anos ou menos, pode esperar viver séculos” e também “a primeira pessoa a viver 1.000 anos pode ter neste momento 60 anos”.

A nível celular a imortalidade não surpreende: aí a temos nas células tumorais, ainda que a prazo elas levem à morte da pessoa, embora não através de um mecanismo de envelhecimento. Contrapondo-se à ideia de que tudo no universo envelhece, há quem traga à colação argumentos colhidos em diferentes formas de vida. Na verdade, certas plantas têm uma longevidade de milhares de anos. Assim, na Tasmânia, descobriu-se uma espécie de azevinho, a lomatia tasmanica, com 43000 anos e nada indica que ela venha a morrer. Também nos vertebrados há longevidades surpreendentes. A tartaruga gigante, como é sabido,  vive centenas de anos e há especialistas que julgam poder ir até aos 5000 anos. Por sua vez, a lagosta nunca mostra sinais de envelhecimento e há especialistas que admitem ser ela intrinsecamente imortal  e que só morre porque algo exterior a impediu de viver.  Ela cresce sempre, o que complica a sua vida, pois torna-se mais visível aos predadores. A lagosta nunca perde a fertilidade; pelo contrário, torna-se mais fértil à medida que os anos passam.

O gene FoxO tem sido relacionado com a capacidade de não envelhecer. Um dos dados mais recentes a sustentar esta relação foi encontrado na hydra, um animal da classe dos protozoários, considerado potencialmente imortal e que tem sido objeto de estudos sobre a senescência. Julga-se que a sua faculdade de manter células estaminais com permanente capacidade de proliferação ao longo da vida está na base dessa ausência de envelhecimento. Um estudo publicado no final do ano passado  mostrou relação entre a capacidade proliferativa das células estaminais e o gene FoxO. Ora, nos seres humanos centenários, têm sido encontrados altos níveis funcionais desse gene.

Os resultados que referi parecem sustentar a conjetura da potencial imortalidade do Homem, mesmo sabendo que não é possível transpor linearmente para a espécie humana o que se verifica noutras espécies, sobretudo nas mais afastadas no leque evolutivo. Mas ainda que se confirmasse esta muito discutida hipótese, a sobrevivência do Homem seria sempre limitada por causas externas – acidentes, condições ambientais, etc. – que, como postulou Medawar, atuariam determinando uma redução dos sobrevivos segundo um ritmo constante e inexorável (o chamado declínio exponencial), incompatível com uma existência perene.

Como sublinha Olshansky, que contesta o mito da imortalidade, “na gerontologia nada indica que se cumpra a promessa de uma vida extraordinariamente prolongada”   e, de facto, a idade máxima atingida pela vida humana tem-se mantido com muito pequena variação ao longo da história, com a francesa Jeanne Calment a atingir a idade de 122 anos e 5 meses, o máximo conhecido até hoje.

Prof. Doutor Henrique Vilaça Ramos